sábado, 29 de março de 2008

"PÁRA, PAPÁ..."


Oh Papá...
Estás triste?
Não?
Está bem, eu sento-me ao teu colo.
Gosto muito que me dês beijinhos...és o meu Papá lindo, és o meu Papá querido.
Cheiras a vinho, Papá...
Os teus olhos estão tão vermelhos, Papá...
Porque estás a respirar tão depressa, Papá?
Não!
Não me tires a minha boneca, Papá!
Porque estás a atirá-la para o chão, Papá?
Assim ela vai ficar sozinha...
Vai ficar triste...
Assim ela vai chorar, Papá.
Olha para ela a olhar para nós, Papá, com a saia torta e toda amarrotada...
O que estás a fazer, Papá?
Está quieto!
Não mexas aí!
Está quieto, Papá...
O que estás a fazer?
Não me apertes assim tanto, Papá, fico com falta de ar...
Oh Papá...o que estás a fazer?
Porque estás a fazer isso, Papá?
Porque estás aí com a mão, Papá?
Mas isso não se faz!
Isso é feio!
Isso é pecado!
Ai...
Não!
Não quero!
Oh Papá, onde está a Mamã?
Eu quero a minha Mamã...
Oh Papá, pára com isso!
Tira a mão debaixo da minha saia!
Não!
Não mexas aí...
Está quieto, Papá!
Não faças isso, Papá, que isso dói!
Claro que gosto de ti...tu és o meu Papá!
Se eu gostasse de ti deixava?
Se eu gostasse de ti deixava que tu mexesses aí?
Porquê, Papá?
Porque estás nervoso, Papá?
Porque estás a tremer, Papá?
O que é isso , Papá?
Eu sei que sou a tua menina...
Sim, eu sei que gostas de mim...
Sim, eu sei que tu me adoras...
Mas porque estás a fazer isso comigo, Papá?
Eu portei-me mal, Papá?
Eu fiz alguma asneira, Papá?
Oh Papá, mas isso é o que tu fazes com a Mamã...
Oh papá, eu não quero que tu faças isso, papá!
Pára, papá!
Estás a magoar-me, papá!
Está-me a doer muito, papá...
Que foi, papá?
Não papá, não conto a ninguém.
Sim papá, eu adoro-te!
Mas porque é que me queres fazer isso, papá?
Eu não sou má menina!
Eu porto-me bem, papá.
Está bem papá, eu estou quieta, muito quietinha...
Ai.....
Ai, papá, está-me a doer.
Pára, papá!!!!
papá...
Dói...
Dói, papá!
papá!!!!
Está a deitar sangue!
papá!
Onde vais, papá?
Porque me deixas aqui sozinha, papá?
Já não gostas mais de mim, papá?
Mas eu chorei, papá, porque me estava a doer muito, papá...
papá...
Estava a doer, estava, papá!
Olha!
Até está a deitar sangue, papá...
Onde estás tu, papá?
Oh papá, volta, papá...
Já não sou a tua menina, papá?
Eu prometo que não choro mais, papá!
Eu prometo que me porto bem, papá!
Eu prometo que me calo, papá!
Eu prometo que fico quietinha, papá?
Volta, papá...
A boneca está triste, papá, e eu também estou, papá.
Eu sei que fui má menina, papá.
Desculpa, papá!
Eu não volto a ser mais má para ti, papá!
Tu ainda gostas de mim, papá?
Oh papá...
Oh papá, onde estás?
papá!
papá!
papá!...



Escrever esta crónica demorou muito tempo e foi um processo lento e de grande hesitação quanto à sua razoabilidade. Questionei-me, muitas vezes, se a deveria escrever e, se a deveria publicar...
Decidi avançar, contudo, como denúncia dos muitos casos que, resultando de processos de incesto, magoam, martirizam, rasgam, destroem, marcam a ferro e fogo, o presente e o futuro de muitas crianças, roubando-lhes o sorriso, a vida, o ser, a paz.
De uma forma ou de outra, com mais ou menos pormenores sórdidos, mais ou menos perceptível, mais ou menos sofrido, mais ou menos culpabilizante, este é o relato tipo de uma violação de menor por um seu convivente, no caso, o próprio Pai.
Esta crónica pretende ser um acto de denúncia, mas também representa uma mão estendida, de carinho solidário, para todas as crianças que foram vítimas de assédio sexual, com especial incidência para aquelas que o foram dentro do lar, pelos seus conviventes mais próximos, por vezes os próprios imagos parentais.
Pretende ser o grito contra um silêncio pesado...
Não se trata de uma realidade distante, num outro país qualquer, bem lá longe...pelo contrário. Por mais tranquilizante que seja acharmos que esta realidade não existe, casos destes acontecem junto a nós, bem perto, na casa ao lado ou na mesma rua.
Não se trata de um drama literário.
Não é um texto de novela.
Não é o guião de um filme.
É um relato...real.
De um filme de terror, que não é justo ser vivido...
Mas não é inventado.
É real!
Por isso, denunciado.
É um relato de um filme que, todos os dias, volta a ser filmado, hoje com uns actores, amanhã com outros...mas sempre com um mesmo terrível guião, num mesmo cenário de terror.
Não pretende ser escabroso, nem deve ser deixado para trás, sem ler.
E, por favor, não cometam a injustiça de pensar que esta não seria uma crónica para publicar ou ler num Domingo...estas crianças, há muito que deixaram de ter Domingos...
Fica, a título de exemplo.
Fica, a título pedagógico.
Fica o grito, de denúncia.
É um relato, uma réplica, fidedigna, do real...Infelizmente.
O real que, por incompreendido e inconfessado, tantas vezes leva ao suicídio, asfixiado e cuspido pela noção de culpabilização da vítima que, inocente, se culpabiliza de forma atroz, não conseguindo lidar com o sucedido. Um suicídio que, sendo um processo de desistência, acaba por ser, em simultâneo, um acto de conquista de liberdade e de paz.
Acaba por ser a única hipótese de voar...
Este é, apenas, um relato...
Tantas vezes ouvido...
Tantas vezes sentido...
Tantas vezes chorado...
Real.
Infelizmente!

49 comentários:

Maria disse...

-Olha aqui, lê esta crónica.
-Livra queres mesmo deixar-me mal disposta, para que me chamaste para ler isto? Eu sei que existe mas não posso fazer nada.

E é assim com este 'isso põe-me mal disposta' que nos vamos todos calando e tentando não pensar no assunto enquanto outros sofrem (muito e muitas vezes) em silencio, mas confesso eu tambem não sei o que fazer para alem de me sentir revoltada

Cristina disse...

Real.
Infelizmente!

Por isso,

Tantas vezes lido ...
Tantas vezes sentido ...
Tantas vezes chorado ...

diabitah disse...

...doi só de ler...

Bjo

Manuel Damas disse...

Ler.
Perceber.
Compreender.
Denunciar.
Acarinhar.
Detectar...

Manuel Damas disse...

Um beijo, Cristina.

Manuel Damas disse...

Um beijinho, diabitah...

Manuel Damas disse...

Oh Maria...e desculpe lá voltar a si mas esse "isto" incomodou-me.
"Isto" é uma crónica...é um grito.
Desculpe se interpretei mal o sentido do "isto".

Maria disse...

Está desculpado Damas, mas eu chamei-lhe crónica quem eu pedi para a ler é que lhe chamou 'isto', acho que por não saber o que chamar á situação em si (é que nenhumma palavra consegue designar tamanho horror)

Sunshine disse...

Muito bem escrito, muito bom para crónica de Domingo e nos lembrarmos que as vidas não são todas iguais.
Infelizmente, ou felizmente porque aprendi muito, já lidei com alunos, com pessoas chegadas que passaram por esta situação.
Eles não podem gritar, porque estão muito magoados, que alguém grite por elas!!!
Parabéns, professor!
Beijinhos

Outonodesconhecido disse...

E no momento em que acabamos de ler a tua crónica quantas meninas do papá sofrerem este massacre? é pesado...mas real.

Camilo disse...

Doutor Manuel Damas,
Foi preciso arranjar coragem para ler o texto até ao fim...
Tal como "maria", também fiquei revoltado...
O "ser-humano" é mesmo "FdP...

BlueVelvet disse...

Que importa se é sábado ou domingo ou mesmo feriado???
Independente de achar que está muitíssimo bem escrito o que me obrigou a ler de um fôlego porque logo, logo, não percebi o que se estava a passar,já estou como a Maria: o que podemos nós fazer, além destes gritos de revolta que podemos escrever nos nossos blogs?
Denunciar, concerteza, se soubermos, estar atentos, claro, mas sabe tão bem como eu que a maior parte das vezes, estas situações se passam no mais absoluto silêncio.
Casos há até, em que as mães sabem e calam, para não denunciarem o marido, por vergonha, e sei lá mais o quê.
Casos há, em que já cansadas de violações repetidas, as próprias crianças sofrem tudo em silêncio.
O homem é o único animal que faz isto...
Beijinhos, veludinhos e cetins

Manuel Damas disse...

É um horror, Maria, mas real.
Um beijinho grande e bom domingo!

Manuel Damas disse...

Um beijinho grande, CC.

Manuel Damas disse...

Eu sei que é pesado, outono e não foi escrito de ânimo leve...

Manuel Damas disse...

Camilo...foi preciso coragem para escrever o texto até ao fim, tentando ser o mais fidedigno possível.
E creia que muito ainda ficou por dizer. O ser humano consegue, em determinadas circunstâncias, ser perversamente maquiavélico.

Manuel Damas disse...

Conheço mães que desistem de ser mães e acabam por ser cúmplices, por falta de coragem!

gaivota disse...

é uma das mais tristes realidades mundiais, é verdade, mas que importa o resto do mundo?
nós aqui, somos pequeninos e temos estes casos todos os dias, a toda a hora!
tenho 3 filhas já grandes, até sou avó, fico longe de pensar neste crime dentro de casa!
mas tenho 2 mãos e força incalculável, acreditem,
por estas verdades e outras, consigo admitir a chamada "pena de morte", mas devagar...com muita dor, muito sofrimento...
depois ainda lhe chamam psicopatas e ficam ilesos!!!
por aqui me fico...

Manuel Damas disse...

E eu compreendo, perfeitamente, o peso de cada palavra que diz, "gaivota"!
Um beijinho grande.

Anónimo disse...

Parabéns pela crónica professor. Revolta só de ler. Sem dúvida.
Infelizmente não consigo perceber porque acontecem coisas destas.

mjf disse...

Olá!
Intenso...muito revoltante, mas é real...e por vezes muito perto de nós.

Beijocas
Uma boa semana para ti

Olá!! disse...

Hoje de manhã entrei aqui, fiquei com um nó na garganta, saí para ganhar coragem de voltar a ler...
Não adianta tapar o sol com a peneira, há muitos casos destes e HÁ sinais de alerta, todos sabemos isso... `
É revoltante a situação em si, mas ainda pior é a colaboração dos membros da família face à mesma.
Se podemos fazer alguma coisa??? Podemos sim, alertar quando tivermos dúvidas sobre alterações comportamentais nas crianças. Cabe a nós adultos "saudáveis" e, também, aos educadores atentos, abrir os olhos.
Deixem as crianças brincar...
Parabéns Professor, pela crónica feita com tanto sentimento (apesar da angústia que provoca a muitas pessoas).
Beijossss

Unknown disse...

Uns podem gostar da crónica, outros não! Mas ninguém fica indiferente.E acho que o objectivo deste escrito ´esse mesmo. Rasgar a indiferença.
Parabéns.
De resto, a pedofilia ainda por cima incestuosa, é GROTESCO. E como tal, não tem perdão.

Manuel Damas disse...

Oh Patrícia...há muitas coisas para as quais, a um primeiro olhar, é difícil encontrar justificação.
Porém, se olharmos bem, os motivos, as causas, as consequências...está tudo lá, bem visível.

Manuel Damas disse...

Um beijo e votos de boa semana para ti também, mjf.

Manuel Damas disse...

Oh "olá"...também a mim me causou angústia e até alguns amargos...
Mas teve que ser!
Agora, depois de tudo que já li e ouvi, em sequência, voltaria a escrever!

Manuel Damas disse...

A intenção é essa mesma, Maria José...rasgar a indiferença, mesmo que haja quem não concorde...
Um beijinho grande.

Unknown disse...

Eu sei..., mas ainda sou apenas editora-chefe...

Manuel Damas disse...

Adoro mulheres inteligentes.
Um beijinho grande.

Unknown disse...

Gosto muito, mesmo muito de SI.

bEIJINHOS, E ...A LUTA CONTINUA.

Coragem disse...

Se Domingo, é dia de festa, de uma festa que não chega com certeza a casa destas crianças.
Se Domingo é dia de Santo ou Santa, onde se encontram eles nas horas em que isto acontece...
E tantas são as horas...Os dias...Os...
E tanta é a maldade, e tanta é a repulsa que sinto sem nada fazer, sem nada que me fizessem quando precisei...
E tantos são os papás nojentos, que me embrulham o estomago, e tanta é a revolta que fica para o resto de nossas vidas...
Obrigado Professor, porque a dada altura do texto o papá deixou de ter direito a letra maiuscula.

Beijo.

Manuel Damas disse...

Obrigado, Maria José!

Manuel Damas disse...

Estava a ler o seu post, "coragem" e as lágrimas corriam-me pela cara abaixo.
Um beijo enorme.

joana disse...

Revolta ler e saber que infelizmente estes casos são muito reais no dia a dia.
São anjos que ficam sem "asas" muito cedo,que ficam com um peso para toda a vida,e outros há que não aguentam esse peso.
Anjos que em idade de sonhos,vivem pesadelos.
Não há descrição para tamanha crueldade,estes monstros que fazem isto,sim porque não podem ser chamados de pessoas,não deveriam ter direito a viver.
Anjos com nome mas cheios de sofrimento e angustia,querendo ser protegidos são abusados por quem pensam que os vai proteger.Isto revolta-me,e faz com que role as lagrimas de qualquer um que tenha coração.

Manuel Damas disse...

Subscrevo, Joana. Um beijinho grande e boa semana.

Statler disse...

Das chamadas de atenção que lançou aqui que mais tocou o meu coração de gelo!

Um abraço, caro Damas.

Manuel Damas disse...

Obrigado, Statler.
Um grande abraço.

Mary disse...

Tocante, por ser descrito com pormenores...
Chocante, por ser totalmente verdadeiro...
São necessários muitos gritos de denúncia e de inconformidade...tal como este!!
Parabéns pela coragem Professor.
Beijos

Manuel Damas disse...

Um beijinho grande, Mary e obrigado pelo apoio.

Waldorf disse...

Damas, subscrevo na integra o meu companheiro de camarote e acrescento que a sensação que tive foi de ter colhido uma rosa e só descobrir os espinhos quando já me estavam cravados na mão...

Manuel Damas disse...

Essa imagem é muito forte, Waldorf.
Obrigado.

Ruy disse...

Fez muito bem em publicar
è uma triste realidade sr Manuel
o ser humano esta a muito tempo contaminado e doente.

Gi disse...

Estes gritos mudos num mundo de surdos ...

Esta crónica infelizmente não pertence ao mundo do imaginário, do surreal, é o retrato do mundo em que vivemos, em que vive milhares de crianças que são abusadas, violadas, violentadas . São casos reais, dolorosos, inadmissíveis, imperdoáveis que importa denunciar , alertar . Creio que está amis que provado que estes perigos a maior parte das vezes moram perto... demasiado perto.

Deixo um beijo. Pelas saudades que já tinha de vir até aqui e pela qualidade da crónica que li.

Manuel Damas disse...

Obrigado, Ruy.
Um grande abraço.

Manuel Damas disse...

Seja bem re-vinda, Gi.
Um beijinho grande e obrigado pelas palavras solidárias que sei que são sentidas.

Anónimo disse...

Das coisas que mais me custou a ler nos últimos tempos... uma verdade incontornável... :(

Manuel Damas disse...

É uma verdade incontornável, Mr. Enigma.

fa_or disse...

Bolas! Esta chocou-me...

Manuel Damas disse...

A intenção não era essa, "maf"...
Seja bem vinda e volte sempre.
Será bem recebida.