segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

POR GISBERTA UMA VEZ MAIS...E SEMPRE!


Faz hoje 4 anos que Gisberta foi encontrada.depois de ter sido assassinada com requintes de animalidade.
Como homenagem aqui deixo as crónicas que escrevi e publiquei na época.

Lamento, mas recuso-me a fazer parte da maioria silenciosa!
Lamento, mas não vou seguir a estratégia do politicamente correcto, omitindo a questão e preferindo sentar-me numa esplanada a saborear um gelado, em frente ao mar, enquanto debito generalidades, sobre os temas da actualidade, seguindo os ditames de uma consciência pública que se fragiliza e grita quando convém e se cala, quando mais conveniente é!
Lamento, mas não vou por aí!
Lamento, mas não vou assobiar para o lado, argumentando que “está calor”, “ninguém quer ler crónicas desagradáveis e pesadas, quando o calor aperta e o convite é explicito para o divertimento e a displicência”. Não usarei esse argumento falacioso!
Lamento, mas nem sequer me vou atrever a alegar que justiça foi feita, porque eu sei que não é verdade!
Lamento, por Gisberta.
Lamento, por os media terem dado muito menos divulgação à resolução do colectivo de juízes do Tribunal de Família e Menores do Porto que decidiu as medidas que iriam ser aplicadas aos assassinos de Gisberta, do que a eventos bem menos importantes, talvez porque vendem mais ou porque não interessaria acordar uma consciência fascinada com o conflito israelo-libanês ou com a problemática dos incêndios em Portugal! Sem querer fugir ao fio condutor, mas porque é uma observação que urge ser feita e que, estranhamente não vi ninguém efectuar... Alguém reparou que durante o Mundial de Futebol, praticamente não houve incêndios em Portugal quando, por diversas vezes, os termómetros atingiram, em várias localidades, os 30 e os 40 graus?
Mas deixemos este reparo breve, quase em nota de rodapé e regressemos, uma vez mais e sempre, ao caso Gisberta.
Lamento, por tudo isto, mas e principalmente, por Gisberta, que não conheci, mas em quem não deixo de pensar, após o seu brutal assassinato, com requintes de malvadez, por gente que o Sistema decidiu inocentar. E se por acaso me tivesse esquecido do animalesco assassinato, se por acaso não continuasse a usar o exemplo, como “case study” em todas as conferências que efectuo, com o intuito de efectuar um permanente remember me, se por acaso, dizia, me tivesse esquecido... tinha sido violentamente acordado para a realidade, da forma mais insana e hipócrita, aquando da decisão do tribunal... aliás, cumprindo a prévia decisão do Sistema!
Os 13 assassinos foram condenados (premiados) a medidas tutelares de internamento em centros educativos por períodos que vão dos 11 meses – aplicada a cinco assassinos – aos 13 meses – aplicada a seis outros assassinos –, todas elas cumpridas em regime semi-aberto. Ainda dois outros foram obrigados, durante um ano, a frequentar a Escola e a ter acompanhamento educativo... Ocorre-me perguntar, sarcasticamente, como se pode condenar alguém a frequentar a Escola... quando a mesma frequência já é obrigatória por Lei... Ou desconhecerá o Sistema que o ensino escolar é obrigatório, nas faixas etárias referidas?
É este o preço de uma vida, no caso em apreço de Gisberta, nascida a a 5 de Setembro de 1960 em S. Paulo, no Brasil e assassinada no Porto, em Portugal, em Fevereiro de 2006 e de novo assassinada, agora pelo Sistema, em Julho de 2006.
11 a 13 meses...
Lá bem no fundo, no mais recôndito do meu ser, eu sabia que o Sistema ia ganhar, perversamente... mas não queria acreditar.
Nem sequer detectei indícios quando o julgamento foi marcado em tempo recorde.
Tão pouco vislumbrei pistas do desfecho hediondo, quando alguns jornalistas foram anunciando, em tom de breve referência, que a audição das testemunhas iria ser feita muito rapidamente.
Lamento por tudo isto e por todo este tenebroso desfecho.
E ainda houve quem dissesse, do alto da sua suprema sapiência, que teria sido “uma brincadeira que correu mal”...
Uma brincadeira que correu mal?
Torturar, com requintes de extraordinária malvadez e perversidade um ser vivo, durante ininterruptos dias?
Esbofeteada, esmurrada, cuspida, insultada, violentada, penetrada com objectos contundentes, queimada com cigarros e por fim atirada para um nojento poço de vários metros de profundidade, ainda viva, foi uma brincadeira que correu mal?... E que apenas merece como discreta penalização 11 a 13 meses de internamento numa instituição de acolhimento, em regime semi-aberto?
O que teria sido preciso mais?
Prolongar a brincadeira, mais ainda?
Que tal esquartejar o cadáver... ou talvez comer-lhe as entranhas? Seria, ainda, uma brincadeira que foi longe de mais?
Mas o Juiz preocupou-se, também, em alertar para o facto de esta não ser uma sentença punitiva mas antes de socialização... E de Gisberta, alguém se lembrou dos simpáticos pormenores de socialização que durante tenebrosos dias os referidos assassinos se divertiram a ministrar a seu bel prazer, na tal brincadeira que correu mal?
Até os advogados de defesa, intervenientes directos nesta farsa, quiseram dar o ar da sua graça neste argumento felliniano, infelizmente bem real... um achou que devia processar o Estado Português, outro referiu que esta sentença permitia ao assassino encarar um projecto de vida...
Talvez Gisberta gostasse de ter podido encarar, também ela, um projecto de vida e não um pesadelo animalesco de morte torturada em que, certamente, muitos dos seus gritos uivados de forma sangrenta, foram cobertos pelo gargalhar animalesco dos seus algozes, todos perfeitamente conscientes do que estavam a fazer.
Lamento não ter ouvido, neste momento, muitas daquelas instituições, vulgo partidos políticos que, nestas ocasiões, se costumam arvorar em defensores exclusivos dos perseguidos e oprimidos... talvez tenham já entrado em época estival!
Lamento não ter ouvido a Igreja, enquanto instituição, teoricamente defensora máxima dos oprimidos, dos marginalizados, dos injustiçados, dos violentados, solidarizar-se com a vítima...
Lamento tudo isto que me enoja e enraivece!
Mas já podemos todos, de forma aparentemente tranquila, regressar à praia, cantando e rindo, para disfrutar os prazeres que uma estivalidade tranquila proporciona... apanhar sol, bronzear, mandar uns piropos, comer algum marisco, desde que o orçamento familiar o permita, discutir futebol e beber uns copos com os amigos... que tudo voltou à normalidade... o caso terminou, foi julgado e tudo ficou em paz.
Não!
Lamento, mas não é assim!
Lamento, mas em tranquilidade eu não fico... ia quase a escrever “enquanto justiça não for feita”... mas um esgar ácido de revolta mesclado com acidez e nojo toldou-me o sarcástico sorriso sofrido que se desenhava...
Que justiça?... a do Sistema?!
Lamento... mas não consigo entender nem esquecer!

-----------------


Porque tenho memória e não tenho o direito de deixar passar em branco uma data que não pode ser esquecida, esta crónica é dedicada ao assassinato de Gisberta, passados dois anos.
Pensarão alguns... “Lá vem este defender o travesti, de novo!”
Não!
Venho defender o direito à indiferença, muito mais do que o direito à diferença.
“Não me parece uma crónica adequada à pacatez dominical!”, sibilinamente argumentarão outros.
Pois...É precisamente contra esta paz podre que eu escrevo, para que o direito à tranquilidade não seja, apenas, propriedade de alguns, mas direito e dever de todos.
“Estava tudo a correr tão bem. As três crónicas anteriores até foram decentes e sobre política...”alegarão ainda outros, ciosos da defesa do bem estar das famílias.
Mas esta será, também, uma crónica decente, pelo direito à existência, pelo direito à vida, pelo direito à sobrevivência, pelo direito à dignidade.
Eu tenho direito à indignação!
Eu tenho direito a querer e a ter memória!
Sempre que relembro este assassínio não consigo deixar de pensar na angústia, na terrível e atroz angústia que Gisberta terá sentido.
Doente, frágil, sentindo-se no fim de uma existência que perdeu a dignidade, sentindo-se no fim de um percurso que perdeu a beleza, a luz, o brilho, a cor, para se tornar um eterno e infindável cinzento, escuro, muito escuro, demasiado escuro...
E, no fim de tudo isto, em vez da glória glamurosa a que estamos habituados a assistir em filmes de família, surge uma glória sem lantejoulas, sem sorrisos, sem música na saída de cena, sofrida, sem esperança, asquerosa...
Foi esta anti-glória que atingiu Gisberta, na forma de uma tortura animalesca.
Imagino Gisberta, na escuridão, como um animal acossado, dorida, magoada, sofrida, dobrada sobre si mesma, como que querendo regressar à origem, ao ventre materno, para enfim se sentir protegida, para enfim ter um lar, para enfim ter paz!
Imagino Gisberta, uma massa disforme, da pancada, da tortura, transformada numa dor única, imensa, que quase já não dói por ser tão intensa e total, dor que faz companhia e que significa, por ser sentida ainda, o acto de estar viva, porque, lá no fundo, bem lá no fundo, ainda se consegue sentir, no meio de todo um enorme sofrimento, algo a que se consiga chamar apenas dor!
Imagino os gritos de dor lançados por Gisberta, primeiro de indignação e revolta por estar presa e a ser torturada, depois de dor apenas, lancinantes, em uivo, lançado, gritado, sofrido, cuspido para o ar!
Imagino os uivos de Gisberta depois transformados em gemidos de uma dor sentida, entranhada, que atinge por ondas que avançam por todo o corpo e em que tudo dói em conjunto!
Imagino os gemidos de Gisberta depois transformados em murmúrio, soprado, triste, sozinho, ainda sofrido mas, acima de tudo, desistido!
Imagino, por fim, os murmúrios de Gisberta depois transformados em balido, único, contínuo, já não humano, já não identificado, apenas balido, de animal ferido de morte, que apenas pede o direito a desistir, a parar de sofrer, a morrer para ter paz!
Imagino Gisberta, que nunca conheci, babando-se de dor, cuspindo sangue, rasgada, esventrada, esborrachada, perdida, sentindo as dores de uma dor que alastrou ao corpo todo porque nada mais haveria a doer que já não doesse e a tentar esquecer essa mesma dor!
Imagino Gisberta, farrapo velho atirado para um canto de uma escuridão húmida, usando ainda um baton pobre, da cor descolorida da ilusão perdida, já babado dos lábios para o queixo e daí para o peito, cor rubra misturada com saliva e sangue, arrancado de uma boca que outrora soube rir, seduzir, beijar e amar!
Imagino Gisberta, ainda em alerta animal, sempre à espera de um ruído atroz e fatal que lhe recordasse a sua condição de animal enjaulado, palhaço estragado suspenso numa vitrina, ao sabor desvairado de crianças-homens-algozes-assassinos, desprovidos de humanidade, possuídos por uma louca, insaciável e interminável vontade de fazer mal, ferir, violar, violentar!
Imagino Gisberta, com a cara disforme, a mesma que, outrora, exibira nos palcos de uma vida não sonhada, nem desejada, à procura de uma felicidade, de uma dignidade e de uma paz nunca alcançadas, agora massa inchada, ensanguentada, à espera de mais um momento de espectáculo, de circo, já sem música a não ser o gargalhar violento dos esgares dos assassinos que, por prazer, voltam sempre, à procura de mais um momento de diversão-sofrimento!
Imagino Gisberta, por fim atirada para um qualquer fosso, sentindo-se cair, depois molhada e invadida por uma água escura, suja, fétida, putrefacta, mas libertadora porque com ela vem, primeiro, a humidade que anestesia e, depois, a falta de ar que asfixia mas que, por fim, é sinónimo de libertação. A liberdade total e última, que então chega, a paz finalmente alcançada, de uma morte não desejada mas provocada às mãos de quem ainda alguns conseguem considerar, como que numa cantiga de escárnio e maldizer...
“Meninos perdidos, coitados...”

14 comentários:

Fernanda Barroso disse...

E junto a minha dor à sua dor, o eu lamento ao seu lamento, a minha homenagem à sua homenagem...porque ninguém merece sofrer assim...porque não há justificação para tanto sofrimento...
Um abraço. GRANDE.

Manuel Damas disse...

Um beijinho grande, nav...

Casemiro dos Plásticos disse...

Justa homenagem, foi um acto que não tem justificação, como referiu a navegodora, nem desculpa!

abraço professor

Anónimo disse...

e porque a memoria nao me atraiçoa se bem me lembro li pelo menos uma destas cronicas numa das suas aulas ate fiz questao de comprar o jornal na altura
una cronica que sempre me pareceu bem e que apontava o dedo a quem deveria
e que justiça foi feita
nenhuma senhores
nenhuma

Anónimo disse...

professor precisava de uma coisa sua para ontem entenda-se o mais rapidp possivel será que me pode arranjar algo sobre este tema" Vida familiar e afectiva de uma pessoa com deficiência " se me pudesse enviar isso ate segunda 1 de março agradecia
beijos pra malta

Gonçalo disse...

"A Balada de Gisberta" de Pedro Abrunhosa estará relacionada com esta Gisberta?

Um abraço!

:)

Manuel Damas disse...

Um grande abraço Casemiro

Manuel Damas disse...

Eu recordo-me disso Lumiere.
Quanto ao que me pede neste momento e com tão curto espaço de tempo é perfeitamente impossível.
Estamos a coordenar as tertúlias sobre Afectos a começar no dia 8/3, tenho uma conferencia nesse mesmo, estou com a CASA, vai começar o meu segundo programa de tv e ainda tenho que entregar o proximo livro no grupo Leya, na D.Quixote ate ao fim de Março.
Tempo?
Como?
Onde?
O que é isso?
:)))))
Faça pesquisa pelo Google.
Há muito sobre isso.
Abraço

Manuel Damas disse...

O tema do Pedro Abrunhosa foi precisamente dedicado a esta Gisberta.
Um abraço, Gonçalo

Gonçalo disse...

Um tema lindíssimo!

Anónimo disse...

ja procurei professor e o tema nao é nada facil

Jaime Piedade Valente disse...

em portugal a culpa morre quase sempre solteira

e os agressores são frequentemente melhor tratados que as vítimas

basta ver com o que está a suceder aos agressores do rapaz (Leandro) e do professor que se suicidaram por causas das agressões: levaram-nos ao psicólogo e limparam-nos de qualquer responsabilidade

Renata Figueiredo disse...

Boa tarde Dr.
Ontem o Sr. atribuiu culpas em relação a inexistência da disciplina de educação sexual nas escolas, "esqueceu-se" de atribuir culpa as agências de propaganda, até para vender um telemóvel apelam ao sexual.
Se puder, veja esta matéria:
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/05/adolescentes-aderem-ao-sexting-e-postam-fotos-sensuais-na-internet.html
Tenho mais a dizer, mas fica para outra dia:)
Muito obrigada pela atenção.
Renata.

Cristina disse...

Lida do princípio ao fim.
A verdade por vezes é assim: crua.