domingo, 15 de junho de 2008

MUDA ALGO?


Muda algo quando uma pessoa se apaixona?
Refiro-me à interacção com o exterior, com o meio ambiente, com o ecossistema.
“Nada!”, dirão os cépticos...
“Absolutamente nada!”, acrescentarão os radicais...
Muda muito, muda tudo, digo eu.
Senão vejamos...
Subitamente o tempo que estava nebuloso, adquire uma claridade única, radiosa, musical, com cambiantes e tonalidades dignos de uma obra de arte.
O pássaro que todas as manhãs incomodava, invariavelmente com o mesmo grasnar, inevitavelmente à mesma hora, transmuta-se num fabuloso canário, detentor das mais belas penas, um quase arco-íris e capaz de chilreios paradisíacos. Passa a ser um belo confidente, testemunha viva de um processo que se pretende que avance com afecto, assertividade, capacidade de investimento e boa disposição.
Aquela aresta assassina de uma determinada mesa onde, todas as manhãs se bate com o dedo mínimo do pé, gerando uma explosão de vernáculo, dor e lágrimas, transforma-se num original fragmento de design e aprende-se a evitá-lo, com alegria e satisfação, principalmente por ergonomia da dor.
Quando, de manhã, a água quente para o duche falta, por uma qualquer falha do sistema o que constituiria um infindável e pesado processo de irritação, acaba por gerar uma gargalhada e, por vezes, uma reflexão sobre os benefícios para a saúde do uso de água fria no banho matinal...nos mais afoitos chega a ser o momento alfa que despoleta a decisão inabalável de nunca mais voltar a inebriar-se com os vapores de um banho quase turco e turvo que, de deliciosos, se transformam em nefastos.
Se faltam os iogurtes, o leite ou o pão para o pequeno almoço, incómodo que, ao acordar, assume proporções dantescas, acaba por ser motivo para uma re-engenharia de comportamentos no sentido de arquitectar uma outra solução que pode, inclusive, passar por um chá de que jamais se gostou ou até por aquelas bolachas integrais que, num momento de desvario, cedendo às manobras maquiavélicas do consumismo, se tinham adquirido numa grande superfície e até então se encontravam atiradas, abandonadas para um canto da despensa, antecâmara do lixo.
O acto de vestir, de tão maquinal, adquire outras tonalidades, gerando prazer e uma nova capacidade, anteriormente desconhecida, de gestão das peças no armário e o resultado final, até então maquinalmente considerado desastroso, passa a ser recebido com um sorriso de satisfação, orgulho e vaidade.
O vizinho rabugento que todas as manhãs teima em não cumprimentar acaba por ser objecto de desculpabilização, alvo de atenção e compreensão, tornando-se quase simpático, vítima, talvez, de uma qualquer maleita que incomoda, inibe, indispõe e justifica.
Se a empregada da limpeza do prédio teima em deixar o tapete da entrada torto ou fora do sítio, passa a ser encarada como saborosamente pitoresca.
E, de repente, sai-se para a rua.
Aqui sim, verifica-se a grande, a enorme mudança.
A cidade de cinzenta, feia e velha adquire novas tonalidades e arquitecturais edifícios, detentores de deliciosos pormenores nunca antes vistos, apercebidos e saboreados.
Os rostos da multidão, frios e inexpressivos, autênticos autómatos que, todos os dias, como um ritual automático, se entrecruzavam, passam a gerar interesse, tornam-se simpáticos, peças de um cenário de poesia matinal.
A lata de refrigerante que ficou atirada para o passeio, numa atitude selvática de desleixo e desinteresse, passa a ser oportunidade para um acto ecológico, contribuinte activo para a felicidade e a qualidade da vida ambiental.
Os incontornáveis desperdícios intestinais do cão da vizinha da frente, deixados, indecorosamente, ao abandono no meio do passeio, adquirem requintes de humor.
A longa, fastidiosa, torturante viagem para o emprego, eternamente geradora de encontrões e atropelos anónimos e selváticos exibe, agora, cambiantes de roteiro mágico.
Passa-se a olhar para as características da realidade exterior, de um outro prisma, com uma nova capacidade de desfrute, com mais prazer, de forma quase poética.
O emprego, aquele sinistro antro para onde, todas as manhãs se arrastava, dolente, vociferando por nada e tudo, passa a ser um local atraente, com novas potencialidades e características, nunca detectadas, detalhes até então invisíveis.
Até o chefe se torna simpático e sorridente, bom conselheiro...
E quando o olhar pousa no rosto amado?
Aí atinge-se o verdadeiro clímax!
Ouve-se música celestial, tocam címbalos, harpas e trompetes, violinos de som cristalino, melodia de um Afecto que agrada, estimula, inebria, apaixona, delícia...
O objecto da paixão, enquanto entidade una e global, adquire voluptuosas formas, doce postura.
Uma borbulha testemunha de um qualquer ataque tardio de acne adquire graça, doçura, musicalidade.
E o sorriso?...Cristalino, obra prima.
E o olhar?...Profundidade, significante e significado nunca até então vistos porque, agora, se tornou querido.
E o toque?...O cúmulo do prazer.
Até o cheiro se torna mágico.
O que muda, então, por alguém se apaixonar?
Tão só e apenas...Tudo!
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro" a 15-6-08

34 comentários:

Pearl disse...

Por isso ser tão fácil identificar o estado de enamoramento em alguém. Toda a forma de estar com os outros se altera.

fa_or disse...

Ma.ra.vi.lho.so!

Não há nada mais enebriante que o amor... nem os mais finos licores!

Muito boa semana!

Olá!! disse...

Ó Professor até ouvi tocar os sininhos e concordo, muda muita coisa, em especial o estado de ânimo, agora o raio da vizinha ai essa não muda mesmo :)))))


Beijo dos bons

Sandra T disse...

l'amour, l'amour... as endorfinas...ai,ai...

macaw disse...

muda tudo sem dúvida!

quando ando a passear, até dou por mim a sorrir ou a rir sozinha ao lembrar-me de coisas que a pessoa disse. acredito que as pessoas à minha volta pensem "que tolinha a rir-se sozinha" LOL
mas depois, o sorriso desaparece quando me apercebo que afinal estou sozinha e a pessoa está longe...

lindo texto!

bjinhos ;)

Manuel Damas disse...

Precisamente...
:)))))))))
Beijinho

Manuel Damas disse...

uma deliciosa semana para si também, maf...

Manuel Damas disse...

A vizinha fica meenos medonha, ola
:))))))))))))))
Beijitos

Manuel Damas disse...

Pois...o problema é mesmo das endorfinas, Sandra!
:))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))
E das feromonas...

Manuel Damas disse...

C'est la folie de l'amour, maczinha...
Uma magia encantada...

Coragem disse...

olá Professor :))))))

Sabe, acho que está deliciosamente, irremediavelmente...Apaixonado!

Beijo, melhor 2 beijos, ora 3 e não se fala mais nisso.

navegadora disse...

Que bom voltar a ler os seus textos. Inspira para a vida. Espero que esteja a sentir isso tudo e muito mais que ainda fica por dizer. O Amor e a Paixão são estados de graça que tornam " Tudo mais brilhante"
A Vida não espera...Vamos lá VIVER...AMAR e PARTILHAR "afectos", como tão bem sabe fazer!
Muitos, muitos beijinhos para si.

Sunshine disse...

Quando estamos apaixonados entramos num estado de graça... e a vida surge em todo o seu esplendor!
Beijinhos com raios de Sol

BlueVelvet disse...

Quem diz que não muda nada é porque nunca esteve apaixonado...
Muda tuuudo o que tão bem escreveu e se possível ainda mais.
Anda-se mesmo nas nuvens e canta-se" Singing in the rain" com o meior dos sorrisos.
Beijinhos, veludinhos e cetins apaixonados

Manuel Damas disse...

Obrigado Nav, minha querida amiga...
Um beijinho grande

Manuel Damas disse...

Só 3 coragem?
3 apenas?
Tão pouquito...
umbeijnho grande..

Manuel Damas disse...

São deliciosos os seus raios de sol, CC...

Manuel Damas disse...

"Singing in the rain"...uma melodia intemporal.
Obrigado blue...

LeniB disse...

belíssimo texto...
de facto, o estado de enamoramento é um verdadeiro prozac!!
bjs

liamaral disse...

Olá Professor, passei para lhe deixar um beijinho! Se não for antes, vemo-nos no jantar de dia 28!
:)

FM disse...

Cheira-me a "Love is in the air"... Será música, apenas?! (sorrisos)
Abraço e... Gostei muito do texto. Parabéns.

Unknown disse...

Cá para mim anda a Ler o SEGREDO.

Esoj disse...

"Ouve-se música celestial, tocam címbalos, harpas e trompetes, violinos de som cristalino, melodia de um Afecto que agrada, estimula, inebria, apaixona, delícia..."

Ó doutor, pela sua rica saude! E que acontece depois?

Abraço

P.S.: Não ligue, isto é só um ressabiado a reclamar da vida.

joana disse...

Belo texto...
Realmente muda mesmo tudo professor.

Mandei lhe um mail ha uns dias precisava que me respondesse esta semana ta bem professor?
Boa semana
E aquele beijo enorme:)

Manuel Damas disse...

Obrigado lenib.
Os Afectos e, sobretudo, o enamoramento
tornam a vida diferente...
Beijinho grande

Manuel Damas disse...

Lá nos veremos no jantar, lia.
Um beijinho grande

Manuel Damas disse...

Não conheço esse perfume, LM.
:))))))))))))))))
Um grande abraço

Manuel Damas disse...

Não, Zeuzinha...a menina até saber perfeitamente que eu ando a ler Eugénio de Andrade e não O Segredo...
:)))))))))))))))))))
Beijitos

Manuel Damas disse...

Depois...é uma inevitabilidade...
Ou convergente ou divergente.
e esta é a mais recente das minhas teorias, a Teoria da Inevitabilidade...mas um dia destes explicá-la-ei aqui.
Um grande abraço

Manuel Damas disse...

Joana...já lá vou responder.
Um beijinho grande.

Sunshine disse...

Fico à espera da sua Teoria da Inevitabilidade:)))
Beijinhos com raios de Sol

Manuel Damas disse...

Um dia destes, CC.
Um beijinho grande

Pearl disse...

uauuuuuuuu
Este texto está no minimo intenso, absorvente, inquientante!
é assim tão fácil ver que é assim que eu sinto?? E eu que pensava que estava tudo escondidinho cá dentro!!! lol

Manuel Damas disse...

Minha querida Pearl...penso que é universal.
:)))))))))))))))))))))))))