domingo, 26 de novembro de 2006

Não é justo!
Não acredito que tenha andado tão distraído, como tal, como para bom português, fácil é atirar as culpas para cima dos outros quando não se consegue ou se tem medo de assumir as responsabilidades, será para mim mais fácil culpabilizar alguém, que não eu.
Assim sendo, se não fui eu que estive desatento, preferível será dizer que ninguém me avisou e, com esse abrangente e comodamente anónimo Ninguém, englobo tudo e todos, desde o arrumador que todos os dias me crava, até ao Primeiro da Nação que, de outra forma, bem mais dolorosa, também todos os dias me crava.
Por isso repito... ninguém me avisou!
Nem sequer um triste e amarelento decreto, decrépito por ninguém o ler, se entreteve na sua função vã de decretar tal facto, porque sim e também porque não.
Nem um triste e ridículo decretozito foi promulgado!
Lenta mas asfixiantemente, a decisão instalou-se, de forma anónima porque são as piores e foi alastrando, roendo, destruindo...
Uops!
Lamento, mas não estou em delírio persecutório, nem saindo aos poucos de uma tenebrosa ressaca, nem sequer às portas de um confrangedor diagnóstico de Alzheimer com que alguns, poucos felizmente, gostariam de me delimitar.
Lamento, por só agora ter reparado...
Acabaram as Cartas de Amor!
“Passou-se!”, poderá, levianamente, pensar quem neste momento me lê... mas será, decerto, quem por pouca idade, não percebe do que falo... porque aqueles do meu tempo, que não vai tão longínquo, que dinossauro não me sinto, bem sabem do que falo e, da mesma nostalgia partilham, certo estou!
Era um ritual transversal à sociedade, a todos os estratos sócio-culturais e a todas as faixas etárias!
Que doía, mas agridoce e que era uma etapa intransponível no trajecto dos afectos.
E tinha rituais.
E tinha passos.
Primeiro, “via-se” alguém.
Depois “olhava-se para” e isso, significava um avanço em termos de processo de intenções... o “ver” era mais imparcial e asséptico. O “olhar” era já bem mais carregado de intenções... significava que havia algo ou alguém para quem valia a pena olhar, com mais atenção.
Seguidamente passava-se à análise, digamos metafísica, do objecto do desejo... embora esse desejo ainda não fosse consubstanciado em fisicalidade ou sequer essência de verdadeiro afecto.
E se a visão e eventualmente outros sentidos se sentissem envoltos, conquistados, seguia-se o período de latência, o período necessário à germinação dos afectos.... Era o período em que a substância afecto se entretinha a levedar.
Só então, quando o processo germinativo se encontrasse concluído, com êxito, se passava à fase seguinte, a retumbante, a da escrita. E assim se iniciava a caminhada dolorosa-prazerosa das Cartas de Amor. Que não eram simples cartas... eram As Cartas.
Até o papel era diferente, dependendo do arcaboiço sócio-económico do Autor. Havia-as de todo o tipo, para todos os gostos, perfumadas ou não, de papel colorido ou singelamente branco, com flores, com imagens, com paisagens em marca de água, até com bonecos e algumas, que as havia, com milhares de corações, de todas as formas e feitios, mas inevitavelmente vermelhos, ainda que o dégradé fosse possível.
Obviamente que o papel da missiva era complementado pelo envelope que, habitualmente, seguia a mesma linha iconográfica podendo, todavia, ser mais discreto ou mesmo esbatido.
Mesmo o processo de aquisição do veículo da mensagem afectiva era lento e sofrido, começando pela escolha da papelaria e terminando na luta mano a mano tida com o empregado para lhe conseguir explicar, de forma titubeante e corada, o que se pretendia e que inevitavelmente recebia em troca um sorriso cúmplice, por vezes acompanhado de um piscar de olhos encorajador. E tinha que ser um empregado do mesmo sexo, para que a cumplicidade sofrida se tornasse menos constrangedora... Ah, velha cumplicidade inter pares!
Depois vinha a fase mais importante, o mais doloroso e esforçado de todo o processo, a construção do texto, dando azo ao mais elaborado fraseado, poético, meigo, romântico, tentando exprimir da melhor forma, aquilo que ia na mente, que então se denominava alma, de quem escrevia.
Era o tempo das figuras de estilo, com especial incidência para as metáforas e para as hipérboles!
E saiam verdadeiras pérolas literárias, onde normalmente despontavam as comparações do sorriso com as águas do mar, se falava do cabelo revolto e dos olhos em amêndoa, quais estrelas do firmamento. Os mais atrevidos, deixavam escapar algumas referências, ainda que muito vagas, ao corpo.
Não raras vezes, o texto era escrito a mais do que uma mão, com o empenhado contributo do melhor amigo, do “irmão mais velho-mais experiente nas andanças do amor” ou mesmo de um primo mais solícito.
A fase seguinte era passar a carta a limpo... Sim, que isto da escrita envolvia diversos rascunhos, folhas que raivosas e outras frustradas, iam caindo no balde do lixo e só o texto definitivo era o eleito. Apenas então, adquirida a forma mais aprimorada, se obtinha o direito a figurar no “papiro do amor”.
A fase final era a da entrega que, à época, poderia ser pelo correio, pela mão de uma amizade disponível, habitualmente chegada ao ser eleito ou mesmo através do uso de estratégias do “deixar esquecido de forma a que bem vejas”...
Culminava todo o processo a demorada angústia da resposta, que poderia durar longos e infindáveis minutos, dolorosas horas ou tenebrosos dias.
Normalmente chegava, na forma de um sorriso, de um olhar cúmplice acompanhado de um enrubescer da face ou, glória eterna, o direito a uma carta-resposta.
Era assim que se cumpria o processo... era assim que se vivenciavam os preliminares do que poderiam vir a ser os afectos e quiçá... a mais linda história de Amor.
E veio a Modernidade... que simplificou tudo, muitas vezes beneficamente, outras tantas, duvido!
As Cartas de Amor foram substituídas pelos e-mails, pelas sms, pelas mms e por toda uma turba comodamente transformada em sigla, porque mais fácil e rápida... e assim se perdeu a magia, assim se perdeu uma das mais belas, ainda que sofridas, formas de dizer “Amo-te”! in "O Primeiro de Janeiro"

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