domingo, 29 de julho de 2007

SABORES DE VERAO



Quando recordo a infância e a juventude são diversas as memórias que me ocorrem.
Se muitas pertencem aos afectos, outras reportam a sensações, sons, e sabores.
Mas os sabores que recordo estão devidamente etiquetados por épocas e locais.
Relativamente às estações do ano, assaltam-me as recordações do Verão, especificamente os momentos na praia.
Eram as cócegas, quase dolorosas, que a areia me fazia sentir nos pés, quando andava descalço, bem piores quando aquecida pelo sol. Obrigavam-me a um saltitar enervado, verdadeiro bailado grotesco, ilustrado com esgares, alguns gritos e, por vezes, um impropério sussurrado, para evitar represálias.
Mas era, também, a sensação de um frio gélido, cortante, sentido ao entrar no mar. O processo era acompanhado por arrepios e algum temor perante aquele monstro marinho que me envolvia e arrebatava, autoritário e, por fim, me devolvia ao areal, quase com desprezo. E lá vinha eu, tropeçando nas pequeninas ondas que, espumosas, se esvaíam entre os meus dedos dos pés, fazendo-me afundar na areia molhada.
Em seguida vinha o regresso ao conforto protector da toalha, o afagar do felpo, o deitar ao sol para recuperar, tiritando. Deixava-me abraçar pelos raios de sol que, dourados, espreitavam por entre as minhas pestanas molhadas, ultrapassando as pálpebras semi-cerradas, produzindo luminosidades únicas, quase fractais... Progressivamente o calor aconchegante invadia-me, secando a pele e provocando torpor.
Recuperada a energia, seguia-se a leitura dos livros de aventuras, numa primeira fase «Os Cinco», da Enid Blyton e, posteriormente, «Os Sete». Ficava absorto em mistérios imensos, longas viagens por grutas tenebrosas, sempre na tentativa apaixonante de desvendar segredos esquecidos e de descobrir tesouros fantásticos.
Era assim o Verão...
Por último, mas não em último, invadem-me as recordações dos sabores.
Os deliciosos sabores de Verão!
Anunciados, trauteados, gritados, os pregões tentadores antecipavam o início do ritual dos sabores.
A procissão começava pelo inconfundível “Olha a batatinha!”...
Eram batatas fritas, deliciosas, únicas, vendidas em característicos cartuchos de papel vegetal. Estaladiças, salgadas, inesquecíveis, quebravam na boca deixando um delicioso travo salgado que, misturado com o sal do mar, estimulava os sentidos e abria o apetite.
Amarfanhado o pacote, quase com revolta, pelo fim sempre precoce, fazia-se anunciar novo momento, ouvindo-se, ao longe, “Olha o gelado Olá!”.
Também esse pregão era único, porque significava o doce refrescar.
De todos os sabores disponíveis, os meus preferidos eram os de fruta, preferencialmente laranja ou ananás. Mais não eram do que gelo colorido e adocicado, mas sabiam a guloseima fresca, que derretia na boca, tentando enganar a sede e sorvida num ápice.
Estes constituíam os preliminares do momento sublime...
E lá se fazia ele ouvir, cantarolado, prenúncio da maior delícia.
“Olha a Bola de Berlim!”...
Avisava a chegada da rainha dos sabores de praia.
Porque vinha quentinha e dourada. Porque era fofa e estaladiça.
Porque estava polvilhada de pequenos cristais de açúcar que se dissolviam entre os dentes.
Porque tinha uma massa agridoce, que dava acesso ao manjar dos deuses... um delicioso creme, amarelo, espesso, morno, doce, envolvente, que se desfazia na língua, deixando uma sensação melada e inebriante.
Quando terminava o prazer, porque já nessa época todo o prazer tinha fim, o ritual prolongava-se num inconfessável lamber, lento e deleitado, dos dedos lambuzados, um a um, tentando saborear as últimas migalhas, imune à crítica dos adultos.
São estes inconfundíveis momentos que, referentes aos sabores de Verão, constituem as minhas memórias de outrora.
É esta deliciosa cornucópia de memórias e sabores que a ASAE, qual polícia de costumes, de forma ortodoxa e fundamentalista, pretende exterminar, ao querer impor normas e regras de procedimentos, exageradas e utópicas, desfasadas da realidade, inevitavelmente destruidoras de uma mística mágica que seria possível manter, de forma salutar.
Maldita seja!

Nota do Autor:
Li, atentamente, o texto intitulado «Sobre a Sexualidade», da autoria de Alexandre Reis, publicado a 16 de Julho e que se refere a uma crónica que escrevi.
Nunca, até hoje, comentei ou critiquei qualquer texto de que tenha discordado, desde que publicado num jornal com o qual colabore.
É um princípio ético pelo qual sempre me regi.
E não tenciono quebrar essa norma que a mim mesmo impus, que considero ética e de solidariedade, a não ser in extremis.
Aproveito, todavia, para afirmar que as crónicas que escrevo seguem a minha linha de pensamento, enquanto cidadão livre e responsável e, como tal, com direito a opinião.
Mas não só.
Escrevo, também, como Médico cuja função é, para além de outras, alertar e fazer profilaxia.
Escrevo, ainda, como Professor Universitário, que considera seu dever, informar, formar e, acima de tudo, de forma pedagógica, ensinar.
Escrevo, além de tudo, enquanto profissional de Sexologia, tentando elucidar dúvidas, desconstruir mitos, desfazer estereótipos e esclarecer sobre os Afectos e a vivência dos mesmos, através das diversas manifestações das Sexualidades.
E assim continuarei defendendo, acima de tudo, a procura da felicidade, com liberdade, dignidade e sentido da responsabilidade.
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro" a 29/7/2007

2 comentários:

Anónimo disse...

Bem quase me foi possível sentir esses sabores...principalmente o adocicado creme da bola de berlim!
Quanto à sua nota e não sabendo ao certo a que se refere, ouso dizer que escreve sim, e muito bem. Gosto de pessoas que escrevem por/com saber, e não pessoas que escrevem para apenas depois saberem. um beijo

Manuel Damas disse...

Um beijo grande Patrícia e, uma vez mais, obrigado pelo apoio.