domingo, 6 de julho de 2008
ABANDONADA...
Vinha imerso em preocupações, ocupado com milhares de afazeres, daqueles que nos roubam a capacidade de saborear um qualquer momento único.
Era um homem atarefado...
Atarefado como todos o que o sendo gostam, também, de o parecer.
Sempre a correr contra o tempo que corre e passa.
Sempre a correr, sem tempo para ter tempo.
De repente, parei e, depois, olhei.
Primeiro sem ver, porque era uma pessoa muito ocupada.
Depois, apesar de ser uma pessoa muito ocupada, reparei.
Por fim, apesar de ser uma pessoa muito ocupada, vi-a.
Parada.
Tombada.
Caída.
Esquecida.
Esquecida numa qualquer soleira de uma qualquer porta.
Esquecida do tempo.
Esquecida no tempo.
Esquecida pelo tempo.
Tentei perceber.
Sentia-se que o tempo tinha passado por ela, usando-a, sugando-a e, por fim, a tinha atirado, abandonada, solta, já sem utilidade, para a berma da solidão.
Percebia-se que o tempo que passa, por ela tinha passado, deixando marcas...
Fundas.
Profundas.
Sulcadas.
Rasgadas.
Doridas.
Choradas.
Sofridas.
O olhar, a pele, o corpo, a vida eram baças!
Completamente baças!
Irremediavelmente baças!
Teria tido um passado, certamente, um baú de recordações, um património de afectos...
Não teria, de certeza, futuro...nem, sequer, vontade de o ter.
Mas o mais grave era perceber-se que ela o sentia, mas não se importava...já não se importava.
Estava só, vítima daquele tipo de solidão que só as pessoas sós conhecem e sentem.
Já não se lembrava da última vez em que se tinha sentido gente mas, já nem com isso se importava.
Já não lhe interessavam os corpos, os rostos, as mãos, os nomes que lhe tinham sido, outrora, queridos até porque, já nem sequer existiam.
Talvez já nem deles se lembrasse...
Estava mergulhada no grau mais pesado da solidão...o deserto de afectos!
Estava, apenas, à espera...
À espera de terminar.
Para isso,,, qualquer soleira servia e ali estava, num ali que bem poderia ser acolá ou mais além...nem sequer isso importava.
Tentei imaginar quantas vezes se teria sentido, esta mulher, amada...
Quantas vezes teria sido olhada, esta mulher, com admiração, apreço, afecto?
Quantas vezes se teria sentido, esta mulher, abraçada com paixão, desejo, vibrando com um momento de prazer?
Quantas vezes se teria sentido, esta mulher, beijada, acariciada, possuída?
Quantas vezes teria ouvido, esta mulher, o seu nome proferido por uma boca querida, observada por um olhar cúmplice, atraída por um corpo conhecido e, quiçá, amado?
Quantas vezes se teria sentido, esta mulher, viva?
Junto a ela tinha sido abandonado lixo o que a fazia sentir, ela própria, lixo. Era inevitável, para quem observava, a comparação entre a mulher, viva e o lixo que a rodeava, inerte, neste supremo momento de abandono e solidão.
Mas continuava a ser um ser vivo, tentei argumentar...
Mas esta mulher era, já, uma desistente.
Estava, agora, para ali atirada, abandonada, parada no espaço e no tempo, à espera de deixar de ser...um ser vivo.
Distraidamente, mas com revolta, porque era um homem atarefado, limpei uma lágrima que teimava em cair, queimando-me o rosto e afastei-me, primeiro devagar, depois mais rápido e, por fim, a correr, quase fugindo.
Fugia de um fantasma...
Fugia, aterrado com a hipótese de, um outro dia qualquer, aquela mesma soleira ser, de novo, ocupada, já não por aquela mulher mas, desta vez, por um homem...eu!
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro" a 6/5/2008
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37 comentários:
À porta do meu cabeleireiro, numa das zonas mais chics de Lisboa, viveu assim, na soleira da porta uma mulher ou aquilo que restava dela.
Muitas vezes sonho com ela, só que ela tem a minha cara.
E dói como o caraças.
Beijinhos, veludinhos e cetins azuis
belissimo blog, gostei de vir aqui. Parabens
Como a compreendo minha querida blue...
Um beijinho grande.
Meu caro "instantes", seja bem vindo.
Obrigado pelo visita e pelos elogios.
Volte sempre, será bem recebido.
Um abraço
boas
entao parece que finalmente nos vamos conhecer pessoalmente, foi com grande agrado que soube que aceitou ser madrinho da 3 Marcha do Orgulho LGBT no Porto e ainda nos trouxe uma padrinha ;)
vemo-nos por lá (sou o assessor da Marcha)
beijos e abraços
Passem lá no meu cantinho! Tenho um convite para vos fazer!
O melhor será começar a abrandar o passo e perceber que aos outros podemos devolver um sorriso, uma palavra amiga! Porque muitos estão a viver a solidão numa soleira de porta e outros com sua vida prenchida e sem que lhes falte aparentemente nada...falta-lhes o mais importante....tempo para os gestos e afectos e acabam por morrer na solidão.
Num mundo onde chegámos tão longe...tinhamos razão para sermos os mais felizes e realizados e muitas vezes somos os mais deprimidos, ansiosos e solitários. Precisamos da Web dos afectos.
Lá estaremos, anarquista...
Será um prazer e uma honra!
:)))))))))))))))))))))
Ja lá fui, Patrícia.
Um beijinho grande e sinceros parabéns:
Um beijinho grande Jeanette e obrigado pelas suas palavras.
quase sem palavras, mas ainda com folego para dizer que essas pessoas, e são muitas, pela maioria de nós todos são olhadas não como seres humanos mas sim como o "refugo"da sociedade
um abraço silencioso
boa semana
Boa tarde Professor!!
O seu post deixou-me um angústia no coração. Quer ele seja encarado metafóricamente que ele seja real é o enfrentar de uma realidade tão dolorosa nos dias que correm. Fico presa no texto e quase nem consigo dizer (escrever) o que me faz sentir.
Bjs.
PS: Imagem muito bem escolhida.
Esta "Abandonada" tem "água no bico"...
Abraço.
Um outro grande abraço silencioso, meu caro mr_rabbit!
São as angústia que temos bem escondidas no fundo do coração, sunshine.
Não tem não, meu caro Francisco...não tem não...:P
Ai tem, tem....
Não tem, não!
:P
Hum encontrou alguem foi?!
abraço grande professor e boa semana.
Vai uma aposta a melões?! (risos)
Essas pétalas estão a precisar de nova água ou estão encharcadas?
Não é para responder. Saiu-me.
Abraço.
Um grande abraço Casemiro..
Se calhar secaram, meu caro Francisco.
São os riscos que a vida nos faz correr!... e não só.
Quantas pessoas, não viveram uma vida voltada para os que amavam/amam e depois são deixadas ao abandono, esquecidas, não só numa soleira de porta, mas em tantos lares por esse país fora?!...
Também os nossos medos, hoje,... quando abandonamos os nossos filhos, dias inteiros, nas mãos de terceiros... um dia o que nos espera?
Um titulo óptimo para uma musica do Marco. Sim, do Paulo!!!
... e pensar que...
por vezes, pensamos que só acontece aos outros...!
Excelente texto.
Um Abraço, Dr.
Vou mandar-lhe uma "urna" para "enterrar" essa rosa que mais parece um esqueleto...
Onde pára toda aquela energia que tão bem o caracteriza?
Quero lê-lo! Pica-lo! E e mais umas centenas de leitores do "rústico"... Mãos à obra!
Abraço com Amizade.
Na "soleira" de uma qualquer porta não ficará Professor...
TEM e NÃO TEM: não tem "espírito" para isso e tem/terá com toda a certeza quem lhe abra todos os dias a "porta" da felicidade...plena e pura!!!!
Fases são apenas fases...FORÇA!
beijinho Professor
Mais uma entrada que dá prazer ler, ainda que choque um pouco pela verdade e simbologia que pode trazer...
Faz-me pensar que afinal, somos hoje jovens, cheios de vida, a procura de momentos que nos levem aos limites, mas um dia... um dia tal como essa mulher, não teremos nada mais para viver... já ninguem nos olhará da mesma forma, porque o tempo passou!
Custa pensar que poderá ser assim... Aflige muito!
Parabens pelo Texto, beijinho.
Tenho que concordar consigo, maf_ram.
Um beijinho grande
Statler!!!!!!!!!!!!!!!
Meu caro!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Ainda existis????
Quanta alegria para meus cansados olhos...
Meu caro Camilo, um grande abraço e um sincero obrigado pelas palavras elogiosas.
Meu caro Francisco...a vida cumpre-se por ciclos e por fases...
Há fases de maior extrospecção...outras de maior introspecção....nada de mais!
Continuo a escrever mas de forma mais doseada...
Tão só e apenas isso!
Um grane abraço e obrigado pela preocupação!
Obrigado Mary, pelas palavras amigas e um beijinho grande
Foi essa realidade que tentei/procurei transmitir.
Um beijinho grande juannah
Quem é que um dia não sentiu o medo desta solidão atroz?
Acredito que se tratarmos sempre os outros como pessoas, também seremos sempre tratados do mesmo modo.
Este texto fez-me lembrar uma fábula de Esopo. O moral da fábula é que não podemos desprezar ninguém, porque um dia podemos vir a precisar deste alguém.
beijinhos com raios de Sol
Minha querida CC...comparar um texto meu a uma fábula de Esopo é uma tremenda injustiça, para Esopo, obviamente.
Mas, na realidade, a solidão daquela mulher é, por vezes, uma das hipóteses que todos nós temos, quando sobreviventes e, obviamente, assusta-me!
Um beijinho grande e, uma vez mais, obrigado pelos seus deliciosos raios de sol.
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