domingo, 3 de dezembro de 2006

Do Amor ao Odio


Como se passa do amor à agressão física, à violência, ao ódio em relação?
São juras de amor eterno que se extinguem, sentimentos que se esfumam, mas, principalmente, limites que se ultrapassam, muitas vezes sem tempo, oportunidade ou vontade para a reflexão e consequente inflexão...
E esse involuir não é súbito, é gradual.
Lentamente o “amor sem fim” transforma-se em violência, primeiro pensada e logo negada, depois latente ainda que não assumida e finalmente, entra-se num percurso em espiral.
Os suspiros de paixão são substituídos por urros de ódio, mesclados com brutalidade. De forma sarcástica poder-se-ia dizer que é a passagem do sinalzinho delicioso à verruga horrenda!
E essa é a marca indelével do destruir de uma relação!
Num processo de desgaste, quase nunca detectado e muito menos assumido, primeiro cai o amor, depois a amizade, seguidamente o respeito, ingrediente imprescindível numa relação a dois, de afectos. Instala-se, por fim, o ódio monstruoso, intolerante, repulsivo e violento, que alastra sem fim, corroendo tudo em redor.
Assim se percorre o caminho descendente e, de forma involutiva, passa-se do amor ao ódio, numa relação afectiva que ninguém se lembrou de alimentar.
Num relacionamento em que alguém ou ambos se esqueceram de que, acima de tudo, seria primordial conservar, para além dos afectos, a capacidade de diálogo e, condição sine qua non, o respeito a que ambos os intervenientes, pelo menos enquanto seres humanos, têm direito, em plenitude.
Gradativamente os carinhos e as carícias foram caindo em desuso. Depois instalou-se o silêncio na relação e por fim, o isolamento imenso que se sente numa situação que ameaça degradar-se até ao fim.
Por fim, surge a revolta contra uma realidade que se instalou e principalmente, contra o alvo que já foi o foco de todas as atenções, carícias e meiguices.
À medida que a situação se instala e, progressivamente, se vai degradando, surge a sensação de insustentabilidade, de impaciência, de intolerância, de beco sem saída, claustrofóbico, esmagador, asfixiante.
Quando se perde a racionalidade para análise das situações, quando não se vislumbram soluções e essa sensação se torna, só por si, ainda mais desgastante, surge a revolta, primeiro latente, mas que vai fazer aumentar ex-ponencialmente o stresse, a angústia e, simultaneamente, diminuir a procura de soluções e extinguir a capacidade de racionalização dos problemas e dos factos.
Por fim, num qualquer momento de fúria incontrolada, de um pico major de adrenalina, de um gradiente altamente explosivo de conflitualidade, deixa-se de pensar, de raciocinar e avança-se, de forma inclemente, para a irracionalidade, permitindo que venha ao de cima o lado animal que constitui a base do iceberg do ser humano, indissolúvel ponte com o seu passado antropológico... a era da besta.
Assim se percorre o percurso negro que vai da carícia à agressão.
Mas não se pense que este drama é exclusivo de um qualquer estrato sócio-cultural, de um determinado nível económico ou específico de uma faixa etária. É uma problemática transversal à sociedade, não escolhendo faixas nem clusters.
Todavia não é apenas a violência física que urge referenciar. Existe também a violência psicológica, não tão visível porque, em princípio, não deixa marcas físicas, nem causa hematomas mas que, muitas vezes, se torna bem mais corrosiva.
Recordo, há uns anos atrás, uma das frases mais violentas psicologicamente que ouvi proferir em contexto de consulta de Sexologia, em casal.
Encontrava-me perante um casal que tinha recorrido à consulta porque o homem sofria de disfunção eréctil, receando estar a desenvolver um quadro de impotência.
Depois de o ouvir detalhadamente, solicitei a presença da companheira, para uma consulta em conjunto. No dia aprazado os dois chegaram e a mulher, entrando no consultório altaneira, fustigou o companheiro de forma castradora: “O meu marido pediu-me que viesse com ele à consulta mas, sinceramente, não sei o que vim cá fazer... Ele não consegue e não”!
Esta frase, traduziu uma violência psicológica atroz e nunca mais a esqueci, enquanto exemplo de que a violência psicológica consegue, muitas vezes, ser bem mais invasiva, danosa e castradora do que a própria violência física.
in "O Primeiro de Janeiro" a 3/12/2006

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