domingo, 17 de dezembro de 2006

Do “Eu, Carolina”, ao Mário do Big Brother – para onde caminha a sociedade dos afectos?



Nos últimos anos a Sociedade Global tem vindo a conseguir saltos qualitativos evidentes em diversos sectores.
Obviamente que, em simultâneo, tem vivenciado momentos de involução mas, em súmula, o resultado parece ser francamente positivo.
Ainda que a uma velocidade diferente, adveniente da idiossincrasia lusitana, também Portugal tem evoluído, nitidamente, em muitas áreas. Basta referir, a título de exemplo, o Relatório Mundial da Infância 2007, apresentado pela UNICEF e que aponta Portugal como um dos países do Mundo com mais baixa taxa de mortalidade infantil (5:1000 em 2005), sendo o 13º em 180. E a Taxa de Mortalidade Infantil é considerada, universalmente, como um índice de desenvolvimento de um país! Existem, contudo, sectores em que a situação não é tão promissora. A título de exemplo, refira-se a voracidade cada vez maior que a população portuguesa evidencia pela pequena intriga, pelo escândalo, manifestação de um quase primário voyeurismo, inter pares. Tal fenómeno que, em caso individual pode configurar um diagnóstico de parafilia, em termos de sociedade nacional, afigura-se como quase vampiresco ter prazer em conhecer os pequenos escândalos das personagens públicas.
Quando George Orwell escreveu o “1984” e, personificando no chavão “The Big Brother is watching you”, idealizou uma realidade virtual na qual a população mundial estaria a correr o risco de massificação, qual robotização imposta, em que tudo e todos seriam permanentemente vigiados por câmaras de filmar, ao serviço de uma qualquer entidade superior, falhou rotundamente na previsão.
Na realidade, o que se tem assistido, e o caso português é paradigmático, é ao desnudar público de vícios e virtudes, de pequenas-grandes misérias de rostos conhecidos e dramas individuais de famosos. Basta recordar todo o circo montado em redor da morte da Princesa Diana de Gales ou mesmo da ligação pseudo-afectiva desenvolvida entre George Clooney e o seu robusto porco de estimação, ou ainda a opção do Papa Bento XVI pelo uso de calçado Prada...
No caso português, tal estratégia de procedimentos tem levado ao enriquecimento dos media, extravasando já o universo da imprensa dita cor-de-rosa e, a nível da população anónima, tem originado, com o tempo e de modo vertiginoso, a perda dos limites.
Pequenos dramas familiares, escândalos de alcova, episódios de corrupção e um sem número de pecadilhos que sempre existiram, e creio mesmo que nunca deixarão de existir, são atirados diariamente para a capa dos jornais e revistas, alimentando a voracidade pública e, fundamentalmente, gerando lucro.
Veja-se o caso que atingiu, uma vez mais, Jorge Nuno Pinto da Costa, através de mais uma das suas aventuras de alcova.
Nada me move contra Pinto da Costa, que não conheço pessoalmente e muito menos contra o Futebol Clube do Porto que, queira-se ou não, é um referencial desportivo nacional. Sempre me ouvi a defender a minha simpatia pelo FCP apesar de nunca ter sido um fundamentalista e ser, presentemente, um acérrimo crítico do Poder que o Futebol, enquanto instituição, tem no nosso País, em termos de manipulação de massas, por um lado, de exacerbação de fanatismos, por outro, e mesmo da promíscuidade existente entre o Futebol e a Política.
Todavia, e não esquecendo o acima exposto, não entendo como é possível publicar-se um livro, eventualmente vendável em tudo quanto seja superfície comercial, revelando e desnudando ao mais ínfimo detalhe, pormenores de intimidades, manifestações de afectos da vivência em casal.
Muito pior do que ficar a saber que JNPC sofre de flatulência, a título de exemplo, é que tal facto seja passível de ser escrito e, pior, de ser publicado e, mais dramático ainda, que gere histeria na população levando a que tal publicação esgote, em poucas horas, os diversos milhares de exemplares lançados para as bancas.
Tal facto deixa-me atónito!
Não sei, nem quero saber, os detalhes do trânsito intestinal de A, B ou C. Grave é que haja quem o escreva, por sua própria mão ou por interposta pessoa, mais grave ainda é que haja quem publique e, acima de tudo, quem compre.
Espanta-me a voracidade quase animalesca e lúgubre, pelos pormenores mais escabrosos, relacionados com a vida íntima das figuras públicas. Mas mais me choca a passividade e mesmo a cumplicidade que, muitas vezes, as ditas figuras públicas evidenciam, fazendo gáudio dos referidos pequenos episódios.
Sei que a Psicologia e as outras Ciências que estudam a mente humana explicam que o acesso ao pequeno escândalo, ao detalhe pecaminoso, à pseudo-inconfidência transmuta a celebridade de distante em próxima, vulgariza-a, humaniza-a, torna-a tocável, quase igual entre iguais.
Preocupa-me, ainda, que não haja limites para o que se publica e consequentemente se vende relativamente a outrém, descendo ao pormenor escabroso, ridículo, de opereta de fraca qualidade...A este tipo de escrita já se chamou, outrora, literatura de cordel mas, à época, era bem mais decente do que a produzida pela dita modernidade.
Espanta-me ainda que as entidades, nomeadamente as editoras, tenham perdido o conceito de ética profissional e não impeçam a publicação de revelações fétidas referentes à intimidade e à conjugalidade.
O mau gosto tem de ter limites e se tal não é gerado de motu proprio, então que o institucional aja como entidade reguladora!
A isso chama-se decoro e, quiçá, pudor!
E isto remete-me para o outro vector do título desta crónica.
O episódio de criminalidade violenta protagonizado pelo Mário do reality show “Big Brother”. Com a vulgarização dos programas televisivos que desvendam os momentos de intimidade, janela aberta para o interior vivencial de rostos desconhecidos, foram alcandorados aos designados “5 minutos de fama” personagens que não estavam, nem teriam de estar, preparados para tal facto e, como tal, não dispunham de estratégias de coping para interagir com o estrelato.
As luzes da ribalta estonteiam, ofuscam, mas também criam dependência da adrenalina que uma suposta fama gera e, quando os holofotes se apagam e a pseudo celebridade se confronta com a sua realidade nua e crua, a gestão do abandono pode tornar-se dramática. Foi o que se passou com Zé Maria, outra personagem big brotheriana cuja fragilidade psicológica por diversas vezes gerou tentativas de suicídio, quando gélida e asfixiantemente foi confrontado com o peso do anonimato.
O mesmo se terá passado com Mário que, também não sabendo gerir com distanciamento a fama fugaz proporcionada por um momento televisivo se inebriou e quando confrontado com a realidade descompensou, enveredando pela marginalidade, furto e violência, terminando com a sua detenção e posterior julgamento.
Talvez a distância do “Eu, Carolina” aos “tás a ver” não seja assim tão grande e, afinal, não passem ambos, de duas faces de uma mesma moeda...a da cruel realidade em que se está a transformar a sociedade, despudoradamente plástica, sedenta de escândalos e possuída pelo desejo insano de desnudar e de devorar as pequenas intimidades, as misérias e os dramas de cada um dos Outros.
in "O Primeiro de Janeiro" - 17/12/2006

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