domingo, 1 de julho de 2007

PRODUÇAO INDEPENDENTE



A modernidade tem vindo a provocar, nos mais diversos contextos, alterações radicais dos comportamentos a que a Sociedade e a Cultura estavam ancestralmente habituadas.
E tal facto verifica-se, inclusive, com a formatação dos núcleos sócio-familiares.
E afirmo-o tentando não cair no erro de que falava Pessoa in «O Rosto e as Máscaras» quando bradava contra “um modo imoral e hipócrita de falar a que se chama escrever, mais completamente nos vela aos outros e àquela espécie de outros a que a nossa inconsciência chama nós-próprios.”!
Com efeito, há quem sempre tenha defendido que a Família é o núcleo base da Sociedade. Considero que esta definição, já não retrata, com fidelidade, a realidade sócio-cultural da hodiernidade, uma vez que se me afigura bem mais legítimo considerar o indivíduo, esse sim, como base da Sociedade. O ser humano, enquanto entidade multifactorial, representa, só por si, a verdadeira base da sociedade. A partir deste estatuto, desde que se sinta vocacionado para a institucionalização de uma vinculação afectiva, gregária, de tipo familiar então sim, poderá partir para a escolha e posterior constituição, assumida, de uma qualquer tipologia nuclear. Todavia, o alfa situar-se-ia, sempre, centrado no nominal e não na sua forma gregária.
Até porque, e principalmente, as famílias, enquanto fórmula secular instituída como tal, cada vez mais deixaram de reproduzir o protótipo considerado vulgar e/ou habitual, em Sociedade. Os alvores da modernidade trouxeram consigo, entre outras realidades e condicionantes, os novos arquétipos familiares.
O núcleo alicerçado na tríade Pai-Mãe-Filhos tornou-se cada vez mais raro, sem estar a querer opinar acerca da validade desta forma de estruturação social. Manter este tipo de figurino, em certos cenários, tornou-se irónico e, por vezes, quase sinistro... A já quase raridade desta fórmula é constatável nos dados estatísticos disponíveis, cientificamente mensuráveis, e inquestionáveis. Cada vez mais pululam as famílias monoparentais, também estas fruto da desvinculação afectiva. A própria desvinculação, per se, vem-se tornando exequível de forma mais prática e rápida. Surgem, ainda, de forma quantitativamente significativa, as famílias não heterossexuais em que os respectivos estatutos e papéis se repartem entre duas pessoas do mesmo sexo, aqui, por vezes, de forma mais fluida. Aparecem, também, com maior incidência, os núcleos familiares monoparentais, agora por opção, em que um indivíduo se sente vocacionado, disponível e com manifesta vontade, num determinado momento do seu percurso vivencial, para gerar descendentes.
A este epifenómeno poder-se-ia chamar “produção independente”, algo que, há alguns anos, se afiguraria totalmente irracional e, em alguns sectores, ditos institucionais, apodado de “contra natura”, vilipendiado e, quiçá, julgado em praça pública. Mas esta realidade tem tendência a vulgarizar-se, cada vez mais e de forma natural, porque a sociedade global não tem que se compadecer ou seguir piamente uma estereotipia que se afigura cada vez mais desfasada da realidade. É exequível e compreensível que alguém decida, na plenitude das suas faculdades mentais, de forma assumida, reflectida e voluntária, concretizar a vontade de gerar descendentes, sem que isso possa ou tenha que significar a constituição de um núcleo familiar segundo o arquétipo sócio-cultural clássico. A mesma decisão não tem que implicar alterações drásticas da forma de ser e estar, que teriam de passar, inclusive, pela gestão espacio-temporal e consequente reciprocidade o que poderia tornar-se, no mínimo, conflituoso. Há muitos adultos que se sentem, em determinada fase das suas vidas disponíveis para criar descendentes mas, sem que isso possa ou tenha que implicar, sequer, a aceitação de uma outra pessoa a viver em conjugalidade ou mesmo a partilha de espaço próprio.
A sócio-culturalidade tem evoluído, nesta Aldeia Global, para a racionalização ergonómica e descomplexada, prática e descomprometida das situações.
Socorro-me, ainda, de Alçada Batista quando, in «Peregrinação Interior», afirma “Reconheço que reflexões deste género levam sempre os oradores, mesmo profanos, a tomar ares muito solenes e a lançar imprecações à posteridade”... até porque, a dita posteridade já está aí!
O ser humano tem, cada vez mais, direito à sua felicidade, e disso já tomou consciência, assuma ela a forma que bem entender e decidir, sem ter que se sentir agrilhoado ou obrigado a cumprir os cânones que uma temporalidade ancestral tem vindo a fazer implodir, às mãos de uma hodiernidade que não se compadece com estereótipos míticos e ancestrais.
É cada vez mais legítimo o direito de um adulto gerar descendentes sem que isso tenha que obrigar, de forma implícita ou explícita, não o querendo, ao acto de compartilhar uma vida com outrém, que não o descendente. Nem sempre as finalidades justificam os meios mas, nesta situação, sou de opinião que poderá tornar-se exequível uma contractualização, mais ou menos informal, no sentido da prossecução do fim em vista, sem que tal tenha que implicar uma qualquer forma de conjugalidade.
E não me venham com argumentos falaciosos da mecanização da procriação porque a isso respondo com desdém...
O século XXI não precisa de ser castrador ou redutor, até porque a realidade de cada um de nós, só por si, já se entretém, sobremaneira, com tal possibilidade...
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro" em 1/7/2007

6 comentários:

Unknown disse...

É tão complicado ter de concordar consigo.BRAVO.

Beijinho bom.

Manuel Damas disse...

Pois é, meu anjo...A vida não é fácil, nem as próprias especificidades de cada um, em cada circunstância.Beijinho bom...

tb disse...

Um excelente desenvolvimento do pensamento sobre a liberdade de opção. A ler e a reler para relectir...
Acho que a vida é até muito fácil. O ser humano é que complica tudo. Mas isto sou eu a pensar.
Beijo

Manuel Damas disse...

ESta crónica vai servir de mote para o meu próximo programa de rádio, na próxima sexta-feira.Por mais que custe aceitar as pessoas têm direito a querer procriar, sem ser implícita a conjugalidade...Digo eu! :)

Ruy disse...

Ola sr. Manuel
espero que esta tudo bem...
vou deixar aqui uma opinião minha atenção que ñ estou a criticar...
cada da cabeça a sua sentença...
Cuidado com as novas tecnologias...
O sec XXI esta a se perder muita coisa boa do passado mas o ser Humano é assim é curioso e gosta do interdito.
Ter um filho ñ é um brinquedo, ter um filho porque tem meu sangue, anda por ai um descendente meu e pronto, é o que esta a acontecer é triste mas é isso.
Um filho quer Amor, carinho e atenção.
O ser humano é cada vez mais induavilista e materialista: Quero isto, Quero aquilo, Vou fazer assim e as consequênçais ?
a resposta é simples depois vê-se... Aquilo que voçê ñ fala aqui é do "AMOR"
Que faz ele? Onde esta ele?
Cada vez mais esse amor anda perdido, mais uns tempos e a raça humana se tornara em Bobots...
Atenção quando falo no Amor ñ estou a falar de SEXO mas sim do sentimento puro e verdadeiro e isto sim esta a se perder.

Manuel Damas disse...

É o peso de dizer "Amo-te". Parece que cada vez há mais medo de amar...No entanto, a crónica, pressupõe o Amor, mas pelo descendente.
Não devo ser obrigado a aceitar alguém, só porque quero amar outro alguém, só que,desta vez, carne da minha carne!