terça-feira, 17 de março de 2009


Vinha imerso em preocupações, ocupado com milhares de afazeres, daqueles que nos roubam a capacidade de saborear um qualquer momento único.
Era um homem atarefado...
Atarefado como todos o que o sendo gostam, também, de o parecer.
Sempre a correr contra o tempo que corre e passa.
Sempre a correr, sem tempo para ter tempo.
De repente, parei e, depois, olhei.
Primeiro sem ver, porque era uma pessoa muito ocupada.
Depois, apesar de ser uma pessoa muito ocupada, reparei.
Por fim, apesar de ser uma pessoa muito ocupada, vi-a.
Parada.
Tombada.
Caída.
Esquecida.
Esquecida numa qualquer soleira de uma qualquer porta.
Esquecida do tempo.
Esquecida no tempo.
Esquecida pelo tempo.
Tentei perceber.
Sentia-se que o tempo tinha passado por ela, usando-a, sugando-a e, por fim, a tinha atirado, abandonada, solta, já sem utilidade, para a berma da solidão.
Percebia-se que o tempo que passa, por ela tinha passado, deixando marcas...
Fundas.
Profundas.
Sulcadas.
Rasgadas.
Doridas.
Choradas.
Sofridas.
O olhar, a pele, o corpo, a vida eram baças!
Completamente baças!
Irremediavelmente baças!
Teria tido um passado, certamente, um baú de recordações, um património de afectos...
Não teria, de certeza, futuro...nem, sequer, vontade de o ter.
Mas o mais grave era perceber-se que ela o sentia, mas não se importava...já não se importava.
Estava só, vítima daquele tipo de solidão que só as pessoas sós conhecem e sentem.
Já não se lembrava da última vez em que se tinha sentido gente mas, já nem com isso se importava.
Já não lhe interessavam os corpos, os rostos, as mãos, os nomes que lhe tinham sido, outrora, queridos até porque, já nem sequer existiam.
Talvez já nem deles se lembrasse...
Estava mergulhada no grau mais pesado da solidão...o deserto de afectos!
Estava, apenas, à espera...
À espera de terminar.
Para isso, qualquer soleira servia e ali estava, num ali que bem poderia ser acolá ou mais além...nem sequer isso importava.
Tentei imaginar quantas vezes se teria sentido, esta mulher, amada...
Quantas vezes teria sido olhada, esta mulher, com admiração, apreço, afecto?
Quantas vezes se teria sentido, esta mulher, abraçada com paixão, desejo, vibrando com um momento de prazer?
Quantas vezes se teria sentido, esta mulher, beijada, acariciada, possuída?
Quantas vezes teria ouvido, esta mulher, o seu nome proferido por uma boca querida, observada por um olhar cúmplice, atraída por um corpo conhecido e, quiçá, amado?
Quantas vezes se teria sentido, esta mulher, viva?
Junto a ela tinha sido abandonado lixo o que a fazia sentir, ela própria, lixo. Era inevitável, para quem observava, a comparação entre a mulher, viva e o lixo que a rodeava, inerte, neste supremo momento de abandono e solidão.
Mas continuava a ser um ser vivo, tentei argumentar...
Mas esta mulher era, já, uma desistente.
Estava, agora, para ali atirada, abandonada, parada no espaço e no tempo, à espera de deixar de ser...um ser vivo.
Distraidamente, mas com revolta, porque era um homem atarefado, limpei uma lágrima que teimava em cair, queimando-me o rosto e afastei-me, primeiro devagar, depois mais rápido e, por fim, a correr, quase fugindo.
Fugia de um fantasma...
Fugia, aterrado com a hipótese de, um outro dia qualquer, aquela mesma soleira ser, de novo, ocupada, já não por aquela mulher mas, desta vez, por um homem...eu!

2 comentários:

macaw disse...

lembro-me de ler este texto há uns meses atrás aqui... marcou-me imenso...
é difícil decidir entre tantos males que existem neste mundo qual é o pior... mas a solidão, acredito que não seja dos últimos da lista...
uma vida que anda constantemente na solidão não sobrevive muito tempo. as pessoas precisam de amor, de serem especiais, importantes para alguém...
ainda bem que não é o seu caso, vejo pelos últimos posts que tem alguém especial na sua vida. :))))

bjinhos ;)

Manuel Damas disse...

Na realidade esta crónica já tem algum tempo.
Lembrei-me de a publicar aqui de novo porque senti necessidade de, uma vez mais, chamar a atenção para o flagelo da pobreza associado a velhice.
Um beijinho grande.