domingo, 31 de dezembro de 2006

Um quase-conto de Natal...



Foi oficialmente declarada aberta a época natalícia!
Teve direito a discurso televisivo do Primeiro da Nação!
Acendeu-se, na capital, uma vez mais, aquela que dizem ser a maior Árvore de Natal da Europa e assim se iniciou, com pompa e circunstância, a que é considerada, de forma consensual, pelo menos na civilização ocidental, a época dos afectos... o período natalício.
As ruas, as montras das lojas, as portas e janelas das casas engalanaram-se de luz, de cor e de artefactos alusivos à data... dizem-me que maioritariamente de origem chinesa o que, uma vez mais, se vai traduzir num decréscimo prejudicial da produção nacional, mas isso é referência não adequada ao espírito de paz e amor que, oficialmente, se instala nesta altura.
Leio, inclusive, que foram movimentados, em Portugal, por hora, nessa semana, 8 milhões de euros, mas, de novo um pormenor de somenos importância...
É a época em que um pó de magia flutua no ar, fazendo do mundo um quase cenário mágico, em que é fácil sorrir, em que a todos se desejam Boas Festas, ainda que sem significado, mas em que a concórdia geral se parece instalar.
Também eu fui atacado por esse pó mágico que induz o sorriso.
Também eu fui obrigado a andar satisfeito ainda que preocupado com as prendas que não tinha comprado ou em adequar os meus gostos a cada uma das minhas referências afectivas as quais, querendo agradar procurei, também, conciliar com os condicionalismos financeiros em que todos mais ou menos vivemos... ou sobrevivemos.
E assim, imbuído do tal espírito natalício, lá me decidi, por fim, a enfrentar a turba que, nas ruas, dia após dia, ondula, na tentativa vã de tudo comprar.
Percorri ruas, invadi as várias catedrais de consumo do nosso burgo, permanentemente perseguido pelo grasnar das mais diversas formas histriónico-musicais que, nesta época, os diferentes mecanismos de difusão lançam em ondas infindáveis para as ruas. Fui empurrado, acolhido por diversificadas versões de pais e mães natal que todas as lojas, maiores ou mais pequenas, decidiram em uníssono que deveriam utilizar, este ano, como se dessa forma seduzissem o maior número de incautos. E assim fui, supostamente acolhido pelas mais diferentes versões de sorrisos de plástico.
Já farto, quase a terminar uma insana procissão de fé consumista, imerso em sacos, ia a sair de uma das muitas lojas atafulhadas de gente com vontade de comprar este mundo e o outro...
Como que por maldição, tropecei numa manta enrodilhada de velha, já esquecida no chão, por ter perdido a sua função maior... aquecer!
Vociferando baixo, com medo que as câmaras que asseguram a civilidade me detectassem, pontapeei distraidamente a maldita manta que me tinha afastado da azáfama consumista quando, de dentro, saiu um grito. Acto contínuo soltaram-se dois olhos, grandes, enormes, assustados, da cor da dor...
A seguir ao olhar de um sofrido intenso surgiu um rosto de criança, nova demais para já não ter futuro. E, logo depois, apareceu um focinhito de cão rafeiro, abraçado e abraçando o miúdo, no duplo papel de protegido-protector.
E a lufa-lufa parou, estática...
Não foram precisas palavras, nem gestos, apenas a troca de um olhar profundo.
O meu, envergonhado por, sendo adulto, passar ao lado da realidade que a miséria e o sofrimento daquele miúdo me cuspiram no rosto.
O da criança, um misto de medo por ter sido descoberta, por se ver invadida na sua privacidade, a única que conhecia, a das ruas e ao mesmo tempo de fascínio pelos embrulhos coloridos e as fitas garridas que esbracejavam alegres e supérfluas, ansiosas por sair do aperto dos sacos que as confinavam.
Não sei quanto tempo passou, apenas mergulhei naquele olhar de uma outra realidade, pungente, que nada tinha de espírito natalício.
Fui acordado do torpor por uma sensação de fresca humidade... uma lágrima revoltada, envergonhada por ter sido detectada, ardia escorregando-me pela face.
Abria carteira e tirei dela o meu pedido sofrido de desculpas, maneira cobarde de esconder a minha culpabilidade... dinheiro.
Entreguei ao miúdo, não sei quanto, tão pouco interessa, apenas muito pouco enquanto pedido de desculpas por esta sociedade de plástico em que vivemos e fugi.
Fugi, atabalhoado, envergonhado, atrapalhado pelos sacos cheios de alegrias de plástico que, nas suas cores berrantes e preços caros, nada tinham de significado.
E na noite dos afectos, rodeado de papéis coloridos já rasgados e de fitas arrancadas com sofreguidão, voltei ao miúdo e ao cão e senti, de novo, os olhos mareados... até ao próximo Natal!
in "O Primeiro de Janeiro" a 31/12/2006

1 comentário:

tb disse...

Gostei do quase conto de Natal. Também escrevi um... para mim todos os dias e sem prendas, nem plásticos, nem coisas por obrigação ou moda, ou hábito, ou...
Muito bem escrito!