sexta-feira, 31 de outubro de 2008

CARTAS DE AMOR...


A propósito da emissão do "Sexualidades, Afectos e Máscaras" de hoje e do tema, Cartas de Amor, recupero uma crónica que publiquei em 2006, subordinada ao mesmo tema.

Não é justo!
Não acredito que tenha andado tão distraído, como tal, como para bom português, fácil é atirar as culpas para cima dos outros quando não se consegue ou se tem medo de assumir as responsabilidades, será para mim mais fácil culpabilizar alguém, que não eu.
Assim sendo, se não fui eu que estive desatento, preferível será dizer que ninguém me avisou e, com esse abrangente e comodamente anónimo Ninguém, englobo tudo e todos, desde o arrumador que todos os dias me crava, até ao Primeiro da Nação que, de outra forma, bem mais dolorosa, também todos os dias me crava.
Por isso repito... ninguém me avisou!
Nem sequer um triste e amarelento decreto, decrépito por ninguém o ler, se entreteve na sua função vã de decretar tal facto, porque sim e também porque não.
Nem um triste e ridículo decretozito foi promulgado!
Lenta mas asfixiantemente, a decisão instalou-se, de forma anónima porque são as piores e foi alastrando, roendo, destruindo...
Uops!
Lamento, mas não estou em delírio persecutório, nem saindo aos poucos de uma tenebrosa ressaca, nem sequer às portas de um confrangedor diagnóstico de Alzheimer com que alguns, poucos felizmente, gostariam de me delimitar.
Lamento, por só agora ter reparado...
Acabaram as Cartas de Amor!
“Passou-se!”, poderá, levianamente, pensar quem neste momento me lê... mas será, decerto, quem por pouca idade, não percebe do que falo... porque aqueles do meu tempo, que não vai tão longínquo, que dinossauro não me sinto, bem sabem do que falo e, da mesma nostalgia partilham, certo estou!
Era um ritual transversal à sociedade, a todos os estratos sócio-culturais e a todas as faixas etárias!
Que doía, mas agridoce e que era uma etapa intransponível no trajecto dos afectos.
E tinha rituais.
E tinha passos.
Primeiro, “via-se” alguém.
Depois “olhava-se para” e isso, significava um avanço em termos de processo de intenções... o “ver” era mais imparcial e asséptico. O “olhar” era já bem mais carregado de intenções... significava que havia algo ou alguém para quem valia a pena olhar, com mais atenção.
Seguidamente passava-se à análise, digamos metafísica, do objecto do desejo... embora esse desejo ainda não fosse consubstanciado em fisicalidade ou sequer essência de verdadeiro afecto.
E se a visão e eventualmente outros sentidos se sentissem envoltos, conquistados, seguia-se o período de latência, o período necessário à germinação dos afectos.... Era o período em que a substância afecto se entretinha a levedar.
Só então, quando o processo germinativo se encontrasse concluído, com êxito, se passava à fase seguinte, a retumbante, a da escrita. E assim se iniciava a caminhada dolorosa-prazerosa das Cartas de Amor. Que não eram simples cartas... eram As Cartas.
Até o papel era diferente, dependendo do arcaboiço sócio-económico do Autor. Havia-as de todo o tipo, para todos os gostos, perfumadas ou não, de papel colorido ou singelamente branco, com flores, com imagens, com paisagens em marca de água, até com bonecos e algumas, que as havia, com milhares de corações, de todas as formas e feitios, mas inevitavelmente vermelhos, ainda que o dégradé fosse possível.
Obviamente que o papel da missiva era complementado pelo envelope que, habitualmente, seguia a mesma linha iconográfica podendo, todavia, ser mais discreto ou mesmo esbatido.
Mesmo o processo de aquisição do veículo da mensagem afectiva era lento e sofrido, começando pela escolha da papelaria e terminando na luta mano a mano tida com o empregado para lhe conseguir explicar, de forma titubeante e corada, o que se pretendia e que inevitavelmente recebia em troca um sorriso cúmplice, por vezes acompanhado de um piscar de olhos encorajador. E tinha que ser um empregado do mesmo sexo, para que a cumplicidade sofrida se tornasse menos constrangedora... Ah, velha cumplicidade inter pares!
Depois vinha a fase mais importante, o mais doloroso e esforçado de todo o processo, a construção do texto, dando azo ao mais elaborado fraseado, poético, meigo, romântico, tentando exprimir da melhor forma, aquilo que ia na mente, que então se denominava alma, de quem escrevia.
Era o tempo das figuras de estilo, com especial incidência para as metáforas e para as hipérboles!
E saiam verdadeiras pérolas literárias, onde normalmente despontavam as comparações do sorriso com as águas do mar, se falava do cabelo revolto e dos olhos em amêndoa, quais estrelas do firmamento. Os mais atrevidos, deixavam escapar algumas referências, ainda que muito vagas, ao corpo.
Não raras vezes, o texto era escrito a mais do que uma mão, com o empenhado contributo do melhor amigo, do “irmão mais velho-mais experiente nas andanças do amor” ou mesmo de um primo mais solícito.
A fase seguinte era passar a carta a limpo... Sim, que isto da escrita envolvia diversos rascunhos, folhas que raivosas e outras frustradas, iam caindo no balde do lixo e só o texto definitivo era o eleito. Apenas então, adquirida a forma mais aprimorada, se obtinha o direito a figurar no “papiro do amor”.
A fase final era a da entrega que, à época, poderia ser pelo correio, pela mão de uma amizade disponível, habitualmente chegada ao ser eleito ou mesmo através do uso de estratégias do “deixar esquecido de forma a que bem vejas”...
Culminava todo o processo a demorada angústia da resposta, que poderia durar longos e infindáveis minutos, dolorosas horas ou tenebrosos dias.
Normalmente chegava, na forma de um sorriso, de um olhar cúmplice acompanhado de um enrubescer da face ou, glória eterna, o direito a uma carta-resposta.
Era assim que se cumpria o processo... era assim que se vivenciavam os preliminares do que poderiam vir a ser os afectos e quiçá... a mais linda história de Amor.
E veio a Modernidade... que simplificou tudo, muitas vezes beneficamente, outras tantas, duvido!
As Cartas de Amor foram substituídas pelos e-mails, pelas sms, pelas mms e por toda uma turba comodamente transformada em sigla, porque mais fácil e rápida... e assim se perdeu a magia, assim se perdeu uma das mais belas, ainda que sofridas, formas de dizer “Amo-te”!
Manuel Damas, 2006

18 comentários:

Waldorf disse...

Damas, apetece-me usar este espaço para dizer uma coisa ao velho!
É uma coisa que há muito anda entalada entre o colchão e o estrado da cama.

E o que eu tenho a dizer é:

Amo-te velho!

Statler disse...

Velho, há muito que eu sabia que tinhas a coisa entalada!!!

Sabes que não és correspondido, não sabes???

Tenho dito.

Waldorf disse...

Velho!

Não preciso de ser correspondido!
Dispenso qualquer tipo de correspondência contigo, como sabes!

Dá-me lume e empresta-me o isqueiro, mas não fumes no meu cigarro!

Bah!!!!

Manuel Damas disse...

Tão românticos que eles estão....

Waldorf disse...

Ainda aí estás?

C'um catano Damas!

Vai-te rapaz, ide directo ao directo!!!!

Manuel Damas disse...

Ja fui e ja vim...

Statler disse...

Damas, e essas coisas precisam de se dizer???

Eu vou e venho-me muitas vezes e não faço alarido disso!!!!

Bahhhh....

Ahhh, e estou acabadinho de me vir dali :)))))))))))) Tão "cheio" que até ía dando à luz. O que para os tempos que correm não é mau de todo... energias alternativas precisam-se!!!!

Waldorf disse...

Velho!
Tu já eras!
Tu já foste a própria energia alternativa se não tivesses estragado as ventoinhas!

Bah!

Statler disse...

Pois é, velho... vim dali outra vez!!!
Nem sei como é que ainda consigo ser tão irrequieto. A coontar ninguém acredita, vale-me ter-te como testeminha!!!!

Oh fucking, fucking, fucking

Sunshine disse...

Gostei muito da sua crónica.
Recebi cartas de amor, a primeira das quais suponho que tenha seguido todas as fases que descreve... o problema é que o sentimento não era correspondido:)
Depois recebi outras, muitas e também as escrevi. Não há nada mais romântico que escrever uma carta de amor.
beijinhos com raios de sol

Manuel Damas disse...

Meu querido Sta...isso são as condicionantes da idade!
:)))))))))))))))))))))))))))))))))))

Manuel Damas disse...

Oh Waldorf...o Statler está com problemas nas ventoinhas????
Credo!!!

Manuel Damas disse...

Oh Statler...ir e vir muitas vezes não estará a prejudicar as ditas ventoinhas????
Digo eu...

Manuel Damas disse...

Minha querida CC...tantas saudades.
Pois..
As cartas de amor!
Quem as não teve?!
Mas será que ainda são muitos aqueles que poderão dizer que as têm???
Um beijinho enorme.

Ita Andrade disse...

Pois eu te digo que ainda tenho a minha pena sempre pronta e os papeis perfumados e ilustrados por mim mesma. Não acredita? a propósito, não me deixou a sua morada...

Tamojuntoemisturado!
Vem logo matar esta saudade, portuga!

Manuel Damas disse...

Minha querida Ita...
Já fui lá no seu cantinho deixar o que me esqueci de deixar...
:))))))))))))))))))))))))))))))
Um beijo enorme!

Menina do Alto da Serra disse...

:)
Pois é... onde andam as velhas carts de amor deliciosamente rídiculas...
Ainda guardo religiosamente, nas caixas que selecionei cuidadosamente para esse fim as cartas de amor dos meus "romances" de adolescência/juventude.
Pese embora, as "cartas" mais belas de amor que recebi me tenham chegado na era digital em suporte informático...
Enfim.

Manuel Damas disse...

Deliciosamente ridículas mas, ao mesmo tempo, ridiculamente saborosas...
Seja bem vinda e volte sempre...será bem recebida.