domingo, 25 de fevereiro de 2007

ILAÇÕES A EXTRAIR DO REFERENDO...



Concluído que está todo o processo do referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez é já possível, com o assentar da poeira, efectuar uma análise desapaixonada e sem dramatismos e, eventualmente, extrair algumas ilações.
Agora que o processo passa para a esfera legislativa convém referir que, na realidade, a pergunta apresentada aos portugueses era, tão só e apenas, se concordavam que a mulher pudesse equacionar a interrupção de uma gravidez, desde que por vontade expressa, até às dez semanas e em estabelecimento hospitalar credenciado para o efeito. Foi matéria de enorme ruído mas, na realidade, a questão não era o posicionamento a favor ou contra o aborto. Não me parece possível existir alguém que, conscientemente, seja a favor do aborto. Acresce o facto de que, com a decisão saída do referendo, o acto de abortar não passa a ser livre. Apenas se torna possível, com condicionantes próprias, nomeadamente o tempo decorrido e em circunstâncias e locais específicos, equacionar a possibilidade de o efectuar tentando, simultaneamente, reduzir os casos de aborto clandestino e as profundas cicatrizes, físicas e psíquicas que tal prática induz.
Foi também tema de demorada discussão a questão das 10 semanas quando tal facto apenas se prende com a fase evolutiva, dado meramente científico, reportando-se ao momento em que, em termos anátomo-fisiológicos, o embrião passa a feto.
Foi ainda alvo de exacerbado debate a questão da existência, ou não, de vida humana. A este respeito é conveniente afirmar que vida humana, tal como é definida e
conhecida, não existe, na realidade, nesta fase. Não é inocentemente que a Igreja Católica considera que, neste estadio, se a entidade existente não sobreviver, não tem direito a funeral religioso. Não é impunemente que até ao 12º dia de gravidez o conjunto de células vivas, que poderão conduzir a uma gravidez de termo, poderem, em vez de originar uma vida humana, desencadear, de forma diametralmente oposta, um tumor. Convém ainda acrescentar que este conjunto de células, ainda em processo evolutivo, não é capaz de subsistir sem o suporte do corpo da mulher, de forma autónoma. É uma forma de vida, sem dúvida, mas não humana. Não é por acaso que, nesta fase, muitos dos aparelhos e sistemas que, em conceito, definem a vida, não estão em funcionamento. A título de exemplo, os pulmões só funcionam a partir das 28 semanas, a tiróide apenas aos 4 meses, o cérebro só amadurece a partir dos 5 meses, só então permitindo o movimento voluntário. Inclusive, só se pode falar em funcionamento cerebral, definido como tal, a partir das 24 semanas. Acresce que, se em termos médicos o funcionamento cerebral serve como método para definir a morte, tal metodologia poderia e deveria ser utilizada para definir a vida
Esclarecidas estas questões, que muita poeira levantaram e diversas inverdades produziram, convém, agora, efectuar um balanço geral e realista de todo o processo.
Com a fraca participação popular (a abstenção situou-se nos 56,4%) será de reflectir, com muita tranquilidade e sensatez, sobre o instituto do referendo. Foi o 3º em Portugal, o segundo sobre uma problemática tão polémica e fracturante como a IVG. Levanta-se a questão, com toda a racionalidade, se a população portuguesa estará vocacionada para esta forma de democracia directa. Os portugueses parecem não estar sensibilizados para este tipo de consultas e, insistir nesta estratégia, pode tornar-se perigoso, pela possibilidade de generalização da desvalorização dos actos eleitorais, fazendo perigar a democracia representativa.
Em simultâneo e inversamente, é de louvar a capacidade que a sociedade civil evidenciou em todo este processo, ao conseguir fazer emergir das suas fileiras cerca de três dezenas de movimentos que, de forma extraordinariamente activa, participaram na campanha. Tal facto cria espaço para reflectir sobre a utilidade dos partidos políticos, pelo menos da forma como hoje existem. Ainda nesta linha de pensamento, é de toda a justiça salientar a mobilização que se assistiu na classe médica. Concordando ou discordando da questão em debate, os médicos portugueses souberam evidenciar as suas opiniões, como nunca até hoje se tinha assistido, assumindo, de forma inquestionável, a orientação de um debate que tinha, na base, também diversas questões científicas. Mas esta mesma temática afigura-se como uma caixa de Pandora uma vez que, tendo ganho o “SIM”, tal facto implica a reformulação do Código Deontológico, nomeadamente no que a este respeito refere o artigo 47: “1- O médico deve guardar respeito pela vida humana desde o seu início. 2- Constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a eutanásia”.
Mas é, ainda, de concluir que, com o resultado obtido, ganha única e exclusivamente a mulher portuguesa, em termos de dignidade relativamente aos seus estatuto e papel sócio-culturais e familiares. Por isso, foram lamentáveis os festejos que se verificaram nas ruas, com carros e bandeiras, após a divulgação dos resultados. Esta não era uma campanha eleitoral, de âmbito politico, com candidatos...Esta era uma campanha de princípios, de ética, pelo direito à escolha e pela dignidade da Mulher...Tão só e apenas!
De referir, ainda, que com este resultado a Igreja Católica surge como duplamente perdedora. Apesar da estratégia agressiva e mesmo ameaçadora que decidiu trazer para este referendo, tal posicionamento não resultou. A recordar, entre muitas outras, as ameaças de excomunhão que diversos prelados, com responsabilidades na hierarquia da Igreja Católica Portuguesa emitiram. Quando representantes eclesiásticos declaram “A 11 de Fevereiro nem uma freira ficará no convento” e acrescentam, peremptoriamente, que ninguém pode ficar em casa, a população católica portuguesa responde com uma abstenção de 56,4%. Quando a Igreja Católica exige “de forma explícita” o voto “NÃO”, os católicos portugueses respondem com uma votação de 59,27% no “SIM”, oficializando aquilo que há muito se vinha fazendo sentir no seio da comunidade...um assumir de que uma coisa é o que se escuta nos púlpitos e pela voz dos prelados e outra, muito diferente, é a que se executa, na prática, em contexto real. A este título é conveniente ressalvar a situação inédita de se terem ouvido vozes credíveis da hierarquia a discordar do posicionamento oficial, sendo de plena justiça salientar o posicionamento corajoso e sensato de frei Bento Domingues.
Perde, também, com todo este processo, o Partido Social Democrata, enquanto maior partido da oposição. Perde uma excelente oportunidade de capitalizar os resultados. Perde quando opta pelo “NIM”, como posição oficial e depois o seu líder, Marques Mendes, efectua campanha oficiosa pelo “NÃO”. Perde quando os seus tempos de antena são, ainda que de forma encoberta, nitidamente a favor do “NÃO”. Perde quando, internamente, as declarações se multiplicam, com ressonância para o exterior, a favor de ambas as posições, fazendo passar uma imagem de desunião e de fractura, nada consentânea com o lugar de maior partido da oposição. Mas perde também, e principalmente, Marcelo Rebelo de Sousa. Interveio nas mais diversas frentes, tornando-se, quase, omnipresente. Esteve nas televisões, nos sites, nos blogs, nos vídeos, esgrimindo de todas as formas pelo “NÃO”, de forma militante e com argumentos nem sempre os mais correctos. A recordar a forma atabalhoada como foi lançada a proposta de “criminalização sem penalização”, ironicamente proveniente de um professor universitário e num Estado de Direito em que é inexistente a fórmula de criminalização sem penalização. Perde, também, por ter sido o pai da instituição do referendo, em Portugal. Mas Marcelo Rebelo de Sousa transcendeu-se, assumindo a postura de um líder partidário...que já não é! Também, por isso, a sua pesada derrota.
De todos os quadrantes e de forma transversal à sociedade os agentes intervenientes exigiram a criação da Educação Sexual nas Escolas. Até a Igreja Católica, pela voz do Cardeal Patriarca, o aconselhou. Assim sendo, porquê aguardar mais? Com que justificações? À atenção do Ministério da Educação e do aparentemente letárgico Grupo de Trabalho sobre Educação Sexual presidido por Daniel Sampaio.
Cabe, agora, às entidades governativas, o desenhar de todo o enquadramento legal consequente. Urge acautelar a metodologia, os locais, as medidas de aconselhamento, os tempos de reflexão, as comparticipações, o estatuto de objecção de consciência. Mas urge, também, que o processo não se estenda até às calendas gregas.
Por último é legítimo não esquecer que, com este referendo, segundo dados da Comissão Nacional de Eleições, foram gastos 12 milhões de euros quando, se tivesse havido coragem política, tudo se poderia ter resolvido em sede de Assembleia da República. Com uma proposta de alteração legislativa, de iniciativa de um Governo com maioria absoluta recentemente obtida nas urnas, teria sido fácil, possível e compreensível, legislar sobre um tema transversal a todos os quadrantes políticos. Teria sido provável conseguir o pleno do PCP e do BE, a quase totalidade do PS, uma confortável maioria do PSD e uma franja assinalável do CDS. Teria sido mais digno, menos fracturante e menos oneroso, especificamente num momento de “poupança nacional”. Fica, para o futuro, o acto de cobardia politica de José Sócrates.
Aguardam-se “cenas dos próximos capítulos”...
Manuel Damas in O Primeiro de Janeiro a 25/2/2007

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