sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

UM APERITIVO PARA O "FORUM DA SEXUALIDADE" DE LOGO A NOITE...



“ O que é Amar?”
A pergunta rebentou nas minhas costas, apanhando-me desprevenido, quando já tinha acabado a aula e arrumava a pasta. Instintivamente encolhi-me...
Acto contínuo ecoou pela sala de aula uma gargalhada fria e cortante, cuspida, velha de séculos.
Ali estava “A PERGUNTA”...
Todos, enquanto docentes, receamos a pergunta a que não sabemos dar resposta, anátema com poder para nos deixar expostos e que nos persegue, pelo tempo, desde a primeira aula. Em quase duas dezenas de anos A PERGUNTA perseguiu-me, deliciada com o jogo, expectante, atenta, aguardando o melhor momento para me enredar, imperiosa e altiva.
Durante anos aguardei por ela, apesar de não lhe conhecer a forma ou o contexto.
Fui esperando e com isso aprendi a respeitá-la, com temor, logo eu que não sou dado a medos...
Finalmente, tinha aparecido... “O que é Amar?”
Virei-me lentamente, usando o período de latência para tentar construir uma saída, uma resposta protectora.
E logo hoje, que tinha dormido mal e que não me sentia na posse de todas as capacidades, quando o verbo flui e as ideias saltitam, ao longo das frases, num bailado sedutor...
Mas ninguém tem o poder de escolher o seu destino, pensei.
Enquanto me virava, a pergunta ecoava nos recantos escondidos do cérebro, queimando.
“O que é Amar?”, espalhava-se, vagueando de lobo para lobo, deixando uma dor fina e incomodativa.
Ao completar o movimento e preparando-me para o confronto com a turma, apercebi-me de que a tonalidade da sala tinha mudado, tornando-se cavernosa e ancestral.
Quando terminei de rodar, reconheci-os a todos, do alto da sua sabedoria e zombavam...
A sala estava repleta e continuavam, muito para além de onde a visão conseguia atingir.
Pálido, analisei a disposição...
Na primeira fila, os Clássicos, com as togas amarelecidas pelo tempo... Aristóteles, Platão, Sócrates, Ésquilo, Diógenes, Heraclito, Demóstenes, Sófocles, entre outros.
Simultaneamente curioso e nervoso, verifiquei que, a partir da primeira fila, misturavam-se todos, numa organização desorganizada, esquecendo referenciais, tempos, origens e estilos, unidos apenas por um fio condutor, o Verbo, utensílio dos artífices do Saber.
A uns vi, a outros antevi e, a outros, senti...
Estavam Homero e Dante, misturados com Petrarca, Erasmo, Pessoa e Espinoza. Mais além Descartes, Flaubert, Diderot, Namora e Bacon. Ali Camus, Cervantes, Aquilino e Confúcio... atrás Goethe, Simone de Beauvoir com Marguerite Yourcenar e Marguerite Duras. Mais ao lado Montaigne, Rousseau, Hemingway, Voltaire e Conan Doyle, acompanhados por Montesquieu, Shakespeare e Dickens. Do outro lado despontavam Nietzsche, Kant, Ibsen, Joyce e Leibniz, logo seguidos por Malraux, Gabriel Garcia Márquez e Jorge Amado. Mas também se viam Eça, Camilo, Balzac e Jorge Luís Borges. Antevi, ainda, Drummond de Andrade, Dumas, Oscar Wilde e Miguel Torga assim como Victor Hugo, Stendhal e Tolstoi. Mais distantes, sentavam-se Umberto Eco, Gorky e Huxley. Ainda consegui visualizar, já lívido, Camões, Aquilino e Dostoievski, com Sartre, Júlio Dinis e Byron. Mas eram mais e muitos mais...
Misturados mas unidos pelo mesmo elo gnósico, olhavam-me descrentes, possuídos por uma arrogância universalmente consentida.
Eram o Saber...
Já mais calmo, não tentando compreender a lógica da situação, encontrei-me a tentar organizar o pensamento, as ideias em turbilhão e a voz saiu-me titubeante...
Amar é gostar, gostar muito, gostar tudo, o que não implica gostar de tudo!
Olhavam todos para mim, sem ver, do alto do Tempo, sustidos pelo peso do Saber.
Amar é dar, mas também receber, continuei, tentando articular o discurso, não porque se quer ou tem que ser, tão só e apenas porque é, naturalmente.
Amar é ter alguém em nós, connosco, nunca atrás ou à frente mas ao lado e, acima de tudo, do nosso lado, acrescentei.
Os rostos, os nomes, as obras, os percursos, o Saber, continuavam a olhar, plenos de gozo.
Pigarreei e articulei, já com mais força...
Amar não é transformar o outro à nossa imagem e semelhança, modificar no sentido que se gosta... amar é ver, perceber e aceitar o outro, tal como é.
E completei... Amar é gostar de alguém, como é e porque é!
Num esforço pesado, ainda argumentei...
Amar é estar a ler, junto ao mar, parar, erguer os olhos, cruzar o olhar com quem se ama e recomeçar a ler, com um sorriso no rosto, tranquilo e em paz, apenas por estar com...
Sentia-me cada vez mais agitado e desconfortável, furioso comigo e com todos por, vazio de argumentos, não estar a ser convincente.
Gesticulava, esbracejava, tentava vencer e convencer, furibundo e, num último alento de raiva e revolta, rompi a barreira e acordei, suado, sentado na cama, na escuridão do quarto.
Ofegante, resmunguei... maldito jantar!
Recomposto, deitei-me, de novo e quando te senti, reconfortante ao meu lado, adormeci, sorrindo, já vitorioso, a pensar...
Amar é a emoção, o prazer e a paz de estar contigo!
in "O Primeiro de Janeiro", 2006

2 comentários:

Unknown disse...

E agora, o que lhe posso perguntar?
E agora, como encarar o SABER e o AMAR?
Recordar Camões

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.

Luís de Camões

Manuel Damas disse...

Minha querida Maria José...a menina é um manancial de questões...nem sempre boazinhas...:P