
“Nunca escreveste sobre mim!”, atirou-me o mar.
E continuou, em tom de lamento...
“Foram tantos aqueles que o fizeram!
Prosa...Poesia...
Compuseram baladas! Produziram Filmes! Só tu, meu descarado egoísta, nunca escreveste sobre mim!
No entanto, deves-me tanto!
É uma enorme injustiça!...
Estive sempre, sempre, disponível para ti...Quantas mágoas lavaste comigo? Quantas vezes te vi chegar, destroçado, rasgado, em cacos?...Quantas vezes choraste à minha frente, dobrado, encolhido, enrodilhado na dor!
E eu?
Eu, sempre te acolhi...
Soube receber-te, ouvir-te, acarinhar-te, proteger-te!
Quantas vezes vociferaste, acalentado pelo rebentar das minhas águas revoltas?
Quantas revoltas te amainei?...
Quantas desilusões te aplaquei?...
Quantas vezes deixaste descansar os olhos molhados, cansados, desiludidos, no meu horizonte? Molhados pela dor, pelo abandono, pela solidão...
Quantas vezes te sentaste em frente a mim, abandonado, esquecido do tempo das horas e eu te contemplei com carinho, desejoso do teu recobro, ansioso por te ver erguer de novo, disponível para enfrentar tudo e todos, disposto a lutar, preparado para continuar?
Sabes?...
A minha vastidão desarma qualquer um.
A minha imensidão recebe tudo e todos havendo lugar, sempre, para mais um...
O meu troar acalma o turbilhão em que muitas vidas se transformaram.
O meu ondular embala, fazendo regressar à infância e adormecer no seio materno.
Eu sei ouvir e, raramente reclamo!
Eu sei aconselhar, sem cobrar!
Por isso, muitos me procuram porque transmito tranquilidade, serenidade e paz...
Está bem!...Serei justo!
Muitas vezes te vi, realmente, com os olhos a brilhar de felicidade. Ouvi, tantas e tantas vezes, as gargalhadas que soltaste, de alegria!
Até o teu sorriso aprendi a reconhecer...
Logo tu...um dos que mais me procuram!
Mas não és o único, descansa. Quantos desses e dessas que se acham Doutores em Afectos aqui vêm bradar, gritar, sangrar, rebentadas as máscaras, caídos dos ocos e frágeis pedestais onde se tinham colocado, convencidos e ufanos da sua sapiência!
Apesar de tudo, esse teu esquecimento, porque injusto, dói!...”
Mas, depois de tanto se lamentar, a voz calou-se...
Em vão tentei ouvir novas queixas, outros argumentos...
Apenas se escutava o marulhar das ondas, o piar das gaivotas e o entranhar das águas nas areias...
De novo fiquei só.
Não sei se foi sonho!
Não sei se foi realidade!
Mas, obrigado mar...
in "O Primeiro de Janeiro", a 25/3/2007