
Porque tenho memória e não tenho o direito de deixar passar em branco uma data que não pode ser esquecida, esta crónica é dedicada ao assassinato de Gisberta, passados dois anos.
Pensarão alguns... “Lá vem este defender o travesti, de novo!”
Não!
Venho defender o direito à indiferença, muito mais do que o direito à diferença.
“Não me parece uma crónica adequada à pacatez dominical!”, sibilinamente argumentarão outros.
Pois...É precisamente contra esta paz podre que eu escrevo, para que o direito à tranquilidade não seja, apenas, propriedade de alguns, mas direito e dever de todos.
“Estava tudo a correr tão bem. As três crónicas anteriores até foram decentes e sobre política...”alegarão ainda outros, ciosos da defesa do bem estar das famílias.
Mas esta será, também, uma crónica decente, pelo direito à existência, pelo direito à vida, pelo direito à sobrevivência, pelo direito à dignidade.
Eu tenho direito à indignação!
Eu tenho direito a querer e a ter memória!
Sempre que relembro este assassínio não consigo deixar de pensar na angústia, na terrível e atroz angústia que Gisberta terá sentido.
Doente, frágil, sentindo-se no fim de uma existência que perdeu a dignidade, sentindo-se no fim de um percurso que perdeu a beleza, a luz, o brilho, a cor, para se tornar um eterno e infindável cinzento, escuro, muito escuro, demasiado escuro...
E, no fim de tudo isto, em vez da glória glamurosa a que estamos habituados a assistir em filmes de família, surge uma glória sem lantejoulas, sem sorrisos, sem música na saída de cena, sofrida, sem esperança, asquerosa...
Foi esta anti-glória que atingiu Gisberta, na forma de uma tortura animalesca.
Imagino Gisberta, na escuridão, como um animal acossado, dorida, magoada, sofrida, dobrada sobre si mesma, como que querendo regressar à origem, ao ventre materno, para enfim se sentir protegida, para enfim ter um lar, para enfim ter paz!
Imagino Gisberta, uma massa disforme, da pancada, da tortura, transformada numa dor única, imensa, que quase já não dói por ser tão intensa e total, dor que faz companhia e que significa, por ser sentida ainda, o acto de estar viva, porque, lá no fundo, bem lá no fundo, ainda se consegue sentir, no meio de todo um enorme sofrimento, algo a que se consiga chamar apenas dor!
Imagino os gritos de dor lançados por Gisberta, primeiro de indignação e revolta por estar presa e a ser torturada, depois de dor apenas, lancinantes, em uivo, lançado, gritado, sofrido, cuspido para o ar!
Imagino os uivos de Gisberta depois transformados em gemidos de uma dor sentida, entranhada, que atinge por ondas que avançam por todo o corpo e em que tudo dói em conjunto!
Imagino os gemidos de Gisberta depois transformados em murmúrio, soprado, triste, sozinho, ainda sofrido mas, acima de tudo, desistido!
Imagino, por fim, os murmúrios de Gisberta depois transformados em balido, único, contínuo, já não humano, já não identificado, apenas balido, de animal ferido de morte, que apenas pede o direito a desistir, a parar de sofrer, a morrer para ter paz!
Imagino Gisberta, que nunca conheci, babando-se de dor, cuspindo sangue, rasgada, esventrada, esborrachada, perdida, sentindo as dores de uma dor que alastrou ao corpo todo porque nada mais haveria a doer que já não doesse e a tentar esquecer essa mesma dor!
Imagino Gisberta, farrapo velho atirado para um canto de uma escuridão húmida, usando ainda um baton pobre, da cor descolorida da ilusão perdida, já babado dos lábios para o queixo e daí para o peito, cor rubra misturada com saliva e sangue, arrancado de uma boca que outrora soube rir, seduzir, beijar e amar!
Imagino Gisberta, ainda em alerta animal, sempre à espera de um ruído atroz e fatal que lhe recordasse a sua condição de animal enjaulado, palhaço estragado suspenso numa vitrina, ao sabor desvairado de crianças-homens-algozes-assassinos, desprovidos de humanidade, possuídos por uma louca, insaciável e interminável vontade de fazer mal, ferir, violar, violentar!
Imagino Gisberta, com a cara disforme, a mesma que, outrora, exibira nos palcos de uma vida não sonhada, nem desejada, à procura de uma felicidade, de uma dignidade e de uma paz nunca alcançadas, agora massa inchada, ensanguentada, à espera de mais um momento de espectáculo, de circo, já sem música a não ser o gargalhar violento dos esgares dos assassinos que, por prazer, voltam sempre, à procura de mais um momento de diversão-sofrimento!
Imagino Gisberta, por fim atirada para um qualquer fosso, sentindo-se cair, depois molhada e invadida por uma água escura, suja, fétida, putrefacta, mas libertadora porque com ela vem, primeiro, a humidade que anestesia e, depois, a falta de ar que asfixia mas que, por fim, é sinónimo de libertação. A liberdade total e última, que então chega, a paz finalmente alcançada, de uma morte não desejada mas provocada às mãos de quem ainda alguns conseguem considerar, como que numa cantiga de escárnio e maldizer...
“Meninos perdidos, coitados...”
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro" a 24-2-2008