sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

22/2/2006 - POR GISBERTA...



Faz hoje dois anos que Gisberta morreu, vítima de um assassínio brutal, executado com requintes de perversão e malvadez, por uma dúzia de assassinos que o Sistema acha que não têm idade para serem julgados nem condenados.
Porque eu tenho memória, aqui deixo uma crónica que escrevi e publiquei nesse ano...


Era um menino-diferente...
Diferente dos outros meninos, todos iguais entre si.
Era um menino que sabia olhar, como todos os outros mas que, muito para lá disso, sabia ver, o que o tornava diferente. Dotado de extraordinária sensibilidade, chorava com o que os outros não choravam, ria com o que os outros não riam... E gostava do que os outros não gostavam, o que o tornava diferente de todos os meninos, iguais entre si...
E o ser diferente tem, sempre, um preço.
Tinha vindo do outro lado do mar, muito para lá de longe.
Na aldeia-ilha onde tinha nascido, rapidamente se tinha habituado a todos conhecer, sem que ninguém, na realidade, o conhecesse. Para não ser apontado, gozado, molestado, fez sua a máscara da vulgaridade, de que todos somos feitos e nos torna anónimos na espuma dos dias. E foi crescendo, por fora igual a tantos outros, por dentro diferente dos outros todos.
O tempo foi passando, o menino-diferente foi crescendo, sonhando com o momento em que partiria para a grande cidade e onde, estava certo, seria feliz, livre de todas as máscaras.
Chegou então, para felicidade sua, o momento de partir.
Chegado à grande cidade, ao cenário que sempre povoara o seu imaginário de menino-diferente, achou-se em fim livre e deitou fora a máscara de menino-igual, já convencido, e feliz por, finalmente, poder ser ele próprio.
Pobre tonto!
Amargo erro!
Não sabia que a grande cidade, vendedora perversa de falsas ilusões, era mais castigadora do que a sua aldeia-ilha, do outro lado do mar.
Na grande cidade conheceu rostos, mentes, corpos, uma massa anónima de autómatos que o desiludiram, magoaram, fizeram chorar como ninguém.
Coleccionou desilusões e, na solidão da noite, muitas vezes gritou, rasgado de raiva, contra a insensibilidade do animal dito Homem.
E assim continuou a crescer, incompreendido, usado, magoado, só...
Até que um dia, farto de sofrer, tratando a dor por tu e tendo como única companhia a solidão, resolveu dizer:
“Basta!”
Era tempo de desistir, pensava o menino-Homem-diferente.
Arrancou todas as máscaras, as antigas e as recentes e, lançando-as ao chão, já desnudo de falsas aparências, correu sem destino.
Cansado parou e encontrou-se de frente para a Lua, na noite escura, mais só do que nunca, farto da dor, sinónimo de si.
Era o momento de desistir, de vez.
Deixou-se cair e chorou como nunca tinha chorado, lágrimas doridas, sofridas, sangradas, silenciosas, sentindo um frio interior e uma fome de paz que queimava.
Estava farto de dar sem receber, de ser usado para rápidos momentos de prazer, logo negados.
De desfeito que estava, não sentiu alguém que chegava, em silêncio.
De repente, sentiu uma mão que pousava no seu ombro.
Virou-se, então, lentamente.
Primeiro olhou.
Depois viu.
Os olhares cruzaram-se, entrelaçaram-se e não teve medo...
O Outro, devagar, soergueu-o, deitou-o no colo com carinho e abraçou-o, protector.
Lentamente as lágrimas secaram, a dor deixou de queimar e sentiu-se invadido por uma doce sensação, meiga e tranquila.
Ao fim de tantos anos, sorriu embalado... estava, finalmente, em paz.
Em conjunto, paz e dor, esvoaçaram, desaparecendo pelo cone do luar.
Com o nascer do dia, apenas ficou no chão, como marca, uma lágrima que, rapidamente, os pés apressados da modernidade calcaram, na sua corrida inglória contra o tempo.
Agora, algures, o menino-Homem-diferente, está feliz por, finalmente, ter conseguido paz.
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro"- 2006

20 comentários:

mjf disse...

Olá!
Texto escrito com o coração...que desperta em nós uma lagrimita.
A vida tem coisas feias...que nos custa ver e ouvir.

Obrigada pela partilha deste caso...

Beijos
Bom fim de semana

Manuel Damas disse...

Obrigado, mjf.
Um beijinho bom.

diabitah disse...

...
...
...
...
...
não consigo dizer absolutamente nada!

Fantastico!

whitExpressions disse...

O preço por ser diferente.

Peço desculpa fazer um aparte, mas a intenção é boa.

No Porto tenho amigos ligados á arte, design, moda, tanto iamos a serralves como iamos ver shows de travestis, a Gisberta esteve na ribalta, era muito boa profissional, gostava daquilo que fazia.

Malditas drogas e o resto já sabemos, eu sei e muitos sabem!
De uma vida de espectáculo, passou a alimentar-se no coração da cidade.

Malditas drogas!

Vamos recorda-la como um menino especial!

Bom fim de semana again, Professor!

Beijinho

Coragem disse...

Mais um momento especial...
Comovida lhe digo, é preciso mesmo muita coragem para se tirar a mascara, e apresentarmo-nos tal qual somos. Nem todos estão preparados para a diferença, não entendo se por receio se por puro preconceito. Boa noite e um bom programa.
Beijinho

cj disse...

Tenho e tive pena ou talvez não devesse ter. Não sei. Sinto que este mundo não tem solução, todos criticam , todos acham mal, todos "aceitam" hipocritamente o ser diferente, mas é tudo mentira. MENTIRA.

Só desejo que ele ou ela (isso não importa),descanse em paz.

cumprimentos

meu cantinho disse...

olá,infelizente so conhecemos estes meninos tristes quando ha algo que não esta bem,sou daqui do Porto e esses meninos(homens) que fizeram mal a Gisberta tambem e como sabe são meninos tristes,meninos com grandes problemas emociomais ,estão muna intituição,esta correcto que miguem tem dreito de fazer mal mas sabe deus o que vai na cabeça dessas criancas que são forcadas a viver entre a droga,alcool,maus tratos,protistuição, são meninos de bairros problematicos.

não estou a defender como ja disse minguem tem o direito de fazer mal a alguem ,mas a que por a mão na consiencia e ver que estes meninos tambem precisam de ajuda e não é nas oficinas de s.jose .
Mas sim um lar onde possam viver como criancas mornais,onde existe amor,carinho et
beijo
bom fim de semana

Manuel Damas disse...

Um beijinho amigo, diabitah

Manuel Damas disse...

Gostei das suas palavras, "parv".
Um beijinho para si, também especial.

Manuel Damas disse...

Um beijinho grande, coragem.

Manuel Damas disse...

Vale sempre a pena ter pena, cj. No dia em que deixar de valer a pena, então, nada mais valerá a pena...

Manuel Damas disse...

Oh "meu cantinho"...esses meninos-homens como você diz, desculpe lá mas não "fizeram mal" a Gisberta.
Durante dias consecutivos, a diversas horas do dia, iam ter à "jaula" onde tinham Gisberta presa, batiam-lhe, cuspiam-lhe, queimavam-lhe as mamas com cigarros, por diversas vezes enfiaram-lhe diversos tipos de objectos pelo anus acima inclusive paus de diversas dimensões e feitios, atiraram-na para um poço de 15 metros de altura onde acabou por morrer... e mais não digo por que não é necessário trazer para aqui mais dados, horrendos, do relatório da autópsia! Se esses meninos t~em problemas emocionais também todos os criminosos os têm, também BiBi os tem, e até Carlos Cruz.
Desculpe, meu cantinho mas nestes momentos só consigo imaginar Gisberta, que nunca conheci, acossada como um animal, babando-se, cuspindo sangue, sentindo as dores de uma dor que se alastrou ao corpo todo porque nada mais haveria para doer que já não doesse, a tentar esquecer a dor, na escuridão, ainda em alerta para qualquer outro ruído que da noite surgisse e uma vez mais significasse um novo regresso da tortura!
Desculpe, meu cantinho, mas não consigo descobrir normalidade naquilo a que você chama "estas crianças".
Peço desculpa se me entusiasmei neste desabafo mas eu também tenho filhos e sei que os meus filhos apesar de terem 12 e 15 anos de idade, sabem perfeitamente discernir o bem do mal.
Um beijinho, bom fim de semana e volte sempre.Será recebida com mais carinho do que hoje, pelo que peço, de novo, desculpa.

meu cantinho disse...

Eu é que peço desculpa tambem sou mãe,com filhos entre os 23anos,18 e 14 e como disse e torno a dizer minguem tem o direito de fazer mal a alguem.
E nao tenho mais palavras para dizer o que sinto não sabia e repito nao sabia que tinha sido assim.
desculpe
bom fim de semana

Manuel Damas disse...

Meu cantinho...não tem que pedir desculpa.
Eu assumo que este caso me emociona sempre, como aconteceu ontem durante o meu programa de televisão e como está a acontecer hoje, agora que estou a escrever a crónica de amanhã do jornal.
E foi essa mesma emoção que eu deixei transparecer no post com que lhe respondi e em que posso ter sido um pouco agressivo.
Seja bem vinda e sinta-se bem neste "meu cantinho" porque aqui costuma estar-se bem!
:)))))))))))))))))))))

Olá!! disse...

Emocionante...
Vou ler de novo...
Beijo grande

Manuel Damas disse...

Aguarde pela crónica de amanhã!
Será sobre o mesmo tema, ainda que mais sofrida e assertiva!

diabitah disse...

boas...
Posso até compreender que sejam meninos "desprotegidos" que tenham razões para se revoltarem com a vida que levem mas...basta de "mascaras" que servem de desculpas...porque acho que as pessoas que passam por maus bocados têm o "dom" de querer fazer os outros passar mal ou pior que elas...
Chega...eu também passei infelizmente por situações de vida menos agradáveis que me revoltaram e não ando por aí a aproveitar-me dos maus bocados...das dificuldades...da doença para desculpar os meus erros...tento pelo contrário fazer com que a vida continue pelo melhor e ninguém passe pelo que eu passei...faço voluntariado e campanhas diversas de solidariedade...ninguém têm o direito de se "vingar" nos outros...principalmente porque em norma esses "outros" são inocentes...sem culpa de nada...
O facto de serem crianças institucionalizadas, tiveram atitude bastante adulta na forma como pensaram cada "intervenção"...e agora pergunto-me...se tem tanto "conhecimento" porque não o utilizam para apagar os seus passados e mudar às suas vidas?
Secalhar...porque não interessa...e dá geito continuarem com a mascara de "coitadinhos" para desculparem as loucuras que cometem.

Bjos e bom fim de semana

Unknown disse...

pROFESSOR: LI E RELI E VOLTEI A LER. Que grande texto. Que grande poema, que grande pensamento. Obrigada por partilhar connosco estas palavras. São tão sáboas quanto arrebatadoras. Que vergonha não conseguirmos que este tipo de inqualificáveis atitudes se evaporem para sempre.
Devemos pensar no que se passa ao nosso lado. Na porta ao lado. Temos de deixar de virar as costas. Este seu desabafo triste e pesado, fez-me bem.

Chorei.

Obrigada.

Manuel Damas disse...

Subscrevo totalmente, diabitah.
Um beijinho grande e bom fim de semana!

Manuel Damas disse...

Obrigado Maria José. Vou colocá-la aqui agora.