
Já aqui escrevi uma crónica exclusivamente sobre o Papa Bento XVI.
Também já aqui proferi opiniões, indirectamente relacionadas com Ratzinger.
Precisamente por isso não equacionava, nos próximos tempos, tornar a dedicar uma crónica ao Papa actual todavia, nós somos e estamos reféns dos acontecimentos e, não sendo protagonistas, podemos e devemos emitir opiniões sobre os acontecimentos...a isto chama-se, Direito de Opinião.
Quem me lê estará a pensar...”Para estar com toda esta introdução, não vai ser meigo!”
Nem vou ser...
Nem vou deixar de o ser.
Vou, apenas, opinar.
Bento XVI foi convidado a presidir à abertura do ano lectivo na Universidade La Sapienza, em Roma.
Para quem não saiba, La Sapienza é, talvez, a maior Universidade da Europa e, sem dúvidas, uma das mais credenciadas.
Por outro lado o meio científico foi, é e deverá continuar a ser, espero, um meio de ideias, de pensamento, de liberdade, de investigação, de reflexão, de incómodo perante o estaticismo, de rebeldia e de rebelião, borbulhante de ideias e de ideais, de interrogação permanente e contínua, na tentativa quiçá insana de conseguir atingir o Alfa e em simultâneo o Ómega ou seja, na tentativa permanente de tentar chegar à Verdade!
Não é por acaso ou por coincidência que, em regimes políticos contestáveis e contestados, um dos focos de resistência é, por princípio e por definição, a Universidade, no sentido lato, o meio académico, em termos gerais. Até porque, na Universidade, encarada como um todo, junta-se o acto de querer saber, por parte dos cientistas e investigadores que lá trabalham, à força da irreverência, da inovação e da seiva por parte de quem lá estuda enfim, por parte de quem lá tenta aprender. Assim sendo, é um nicho de aprendizagem, de informação e de formação mas e também, talvez pela sua essência e pela sua génese, um foco de inconformismo e de manifestação versus irrequieta contestação.
E ainda bem que assim é!
La Sapienza não foge à regra, felizmente.
Acresce ainda que no meio universitário existe também um núcleo duro, quase fundamentalista, ortodoxo, daqueles a que chamo contestatários militantes que contestam pela filosofia pura do acto de contestar, de forma militante.
Mas toda esta postura é crucial porque impede, só por si, o conformismo e a inanição em que, por vezes, certos centros de ciência têm a tentação demoníaca em cair. Mas voltemos ao cerne da questão. Bento XVI foi convidado... é a acção.
Prontamente surgiu um movimento de contestação, manifestando o seu desagrado e denunciando a intenção de se manifestar, baseando o seu posicionamento, entre outras questões, no facto de ainda se manter proscrito, na Teologia da Igreja, Galileo Galilei, pela sua teoria inovadora relativamente às importâncias relativas do Sol e da Terra...é a reacção.
A este propósito, a história das civilizações conservou ao longo dos anos a célebre frase de Galileu... “E pur si muove!” Poderá ser um preciosismo, perder ainda tempo com estas questões, em 2008, a pouco tempo de estabelecer um centro de residência na Lua e quiçá visitar Marte ainda que não por teletrans-porte...Todavia, poderá ser, pelo contrário, uma questão de princípio. Pode-se acreditar no funda-mentalismo científico e achar expectável que cientistas quisessem, por fim, libertar Galileu da tortura física e psicológica que à altura a Santa Inquisição lhe infligiu e, acima de tudo, fazer-lhe justiça.
É legítimo e plausível.
Todavia, este anúncio de eventual contestação não poderá ser personalizado em Bento XVI...basta recordar que quando João Paulo II aí se deslocou, também ele foi vítima de manifestações contestatárias que o próprio, à altura, achou naturais e providas de alguma legitimidade.
Bento XVI achou por bem, contudo, declinar o convite, para evitar protestos desagradáveis...é a contra-reacção.
Mas o Papa não foi inocente quando declinou o convite pois sabia perfeitamente que o eco mundial que se geraria seria que o Papa tinha sido impedido de se deslocar à Universidade e, em consequência, infindáveis e inflamados editoriais foram produzidos por esse Mundo fora, uns mais “naif” outros, pelo contrário, bem mais doutrinários e encomendados.
A realidade, no entanto, evidencia que Bento XVI, prevendo a contestação, decidiu não se deslocar a La Sapienza e permitiu, se não activamente pelo menos de forma passiva, que se propagasse a ideia de que teria sido impedido. E sabemos perfeitamente o peso enorme de, em vez de ser feita uma afirmação, ser lançada uma insinuação... deixa a cada um enorme espaço livre para anexar, conjecturar ou inventariar os mais diversos processos de intenção.
Por outro lado a vitimização consegue, sempre, os seus frutos...
E não me digam que Bento XVI se encontra inocente e imaculado em todo este processo... recordo a rapidez com que o Vaticano se apressou a pedir, ainda que com outros termos, uma manifestação de solidariedade para com o Papa, na Praça de S.Pedro a qual conseguiu, na realidade, juntar milhares de crentes.
Mas qual a autoridade de Ratzinger para criticar o direito de opinião, ainda que por ele apodado de censório?
Ratzinger terá esquecido que, enquanto Cardeal, detinha, especificamente, o cargo de censor pontifício?
Ratzinger terá esquecido que enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (entidade que alguns apodam de moderna Inquisição) tinha precisamente a seu cargo o terrífico e medievo “Índex Librorum Prohi-bitorum”?... um Índex, como o próprio nome indica, de obras proibidas, pela Igreja Católica, aí figurando nomes como Kant ou Sartre.
Ratzinger terá esquecido que, enquanto Prefeito, sempre defendeu, junto a João Paulo II, a “obrigação moral” que teriam todos os católicos, de não ler nem sequer divulgar as obras que a famosa lista contém?
Até porque se há facto que é do conhecimento mundial é que Bento XVI não tem aspirações a ser considerado um líder ou um arauto da liberdade de expressão!
Recorde-se a título de exemplo a recente medida do Papa em permitir que as missas passem a ser celebradas em latim, na íntegra e, acima disso e ainda mais recente, a autorização para passar a ser de novo permitido que o padre celebre a eucaristia virado de costas para os fieis, como que em comunicação directa com Deus e deixando à parte, com distanciamento nítido e visível superioridade os fieis, comuns mortais. Os fieis, precisamente aqueles que, por ironia do destino, são o principal e imprescindível suporte de uma Igreja que, cada vez mais e de forma assustadora, se afasta, se enclausura, se vira para si própria, de distancia, se torna agente de exclusão em vez de agente de inclusão.
Mérito de Ratzinger?
Sem qualquer dúvida.
Manuel Damas in "O Primeiro de Janeiro" a 27/1/2008